Tibério Vargas Ramos
Ensaios
Erotismo mundano, erudito e sacro
A forma humana com ardil e significado está nas artes há mais de 2600 anos

Tibério Vargas Ramos (*)

A deusa Eos Aurora, de Michelangelo. Tanta perfeição em pedra que tem até celulite

A deusa Eos Aurora, de Michelangelo. Tanta perfeição em pedra que tem até celulite

Seiscentos anos antes de Cristo, havia na Grécia um poeta símbolo nacional. Solon nasceu pobre na ilha de Salamina. Saiu jovem a viajar como mercador, túnica a encobrir o corpo do frio e do sol, turbante na cabeça. Ouvia os poetas pelos caminhos, vendia especiarias e voltou a Atenas, aos 30 anos de idade, rico, filósofo da sabedoria popular, poeta, defensor de nova ordem jurídica e limites na separação das castas sociais, divididas em quatro, em sua concepção de senhor emergente. Tornou-se jurista, político, orador eloquente, moralista e poeta épico. Uma figura imponente, cabelo repartido, duas rugas na testa, a barba branca, olhar estrábico.

O flautista Mimnervo, que tocava canções melancólicas nas tabernas, era fã de Solon, como todos os atenienses. Chegou a dedicar-lhe poemas. No entanto, sua índole era outra. Mundano, romântico. Começou a escrever e declamar poemas eróticos, para deleite das pequenas plateias. Uma elegia ficou para sempre, considerada das primeiras peças sensuais da literatura universal.

Em versos de calor ardente, Mimnervo relatou a relação entre o poeta Alceu e a poetiza Sapho, que trocavam versos públicos, não necessariamente convivendo na intimidade da cama. Poeta lírico e sarcástico, ele lhe dedicou belos poemas que misturavam delicadeza e zombaria. Divorciada de Kerkolos e mãe de uma menina, Cleis, alguns diziam que Sapho era lésbica. Outros garantiam que ela não queria mais saber de homem porque sofrera uma desilusão amorosa. Apaixonou-se pelo barqueiro Phaon e ele partiu no Mar Egeu; e a deixou só. Nunca superou o desprezo. Os cabelos negros separados no meio, uma fita para segurá-los, braços nus, pernas encolhidas, encobertas pelo manto, as sandálias abertas revelam os pés, os dedos dedilham a cítara, tristemente. Acabou se jogando de um rochedo, lá embaixo as ilhas do Mar Egeu. Tudo isso Minnervo contou em sua elegia sentimental, toda concebida através de diálogos fictícios entre os Alceu e Sapho, com passagens picantes.

A poesia erótica antiga, que descreve carícias por baixo do manto de algodão, foi consagrada na Grécia um século depois pela adesão de Anacreonte (560-478 AC), em poemas jocosos e espirituosos, dos quais só restaram fragmentos e uma falsa reconstituição mentirosa no século 16, na França. Os gênios e visionários são raros na história do pensamento. Muitos nomes são relacionados lado a lado, mas eles viveram em épocas distintas. Mais de 200 anos se passaram para que dois poetas eruditos que foram contemporâneos, 300 anos antes de Cristo, com larga produção intelectual, também incursionassem no erotismo. Eles deram nível sofisticado às descrições das paixões carnais. Callimaco, intelectual, responsável pela biblioteca de Alexandria, se eternizou com o célebre “Sobre os cabelos de Berenice”. Philetas, exageradamente magro e delicado, cantou em epigramas seu amor pela amante Bettis, a túnica curta, na altura dos joelhos, sem mangas, apertada na cintura com um cinto. Na mesma época, surgem os idílios ingênuos e ardentes de Teócrito, em “A feiticeira e o ciclope”, a bruxa e o gigante de um olho só a atormentar sonhos lascivos. O sexo e o pavor.

O erotismo grego só chega a Roma no último século antes da era Cristã, quando o romano Caio Catulo traduz “Os Cabelos de Berenice”. Ele também escreve poemas fogosos, mas morre jovem, aos 33 anos. Horácio, então com apenas 11 anos, se torna mais tarde um dos modelos da virtude clássica, mas não resiste à tentação: também comete pequenas odes anacreônticas.

O erotismo visto do ponto de vista de uma terceira pessoa (David Tenier 1610-1690)

O erotismo visto do ponto de vista de uma terceira pessoa (David Tenier 1610-1690)

Apesar da não recomendável amizade passada com Brutos, o assassino de César, Horácio tinha muito carisma. Cabelo rente, olhos redondos, nariz reto, barba raspada, era o centro das atenções. Círculo de poetas gravitava ao seu redor e todos aderiram ao lúbrico. Entre eles, Ovídio e Propércio, pesquisadores da “Eneida”, de Homero. Paralelo ao trabalho sério que desenvolviam, também seguiram a nova tendência apelativa. Em “Amores”, Ovídio descreve relações com amantes fictícias, pródigas em seus favores, e na “Arte de Amar” desenvolve uma teoria galante e corrompida. O lírico Propércio, que compunha versos hexâmetros com pensamentos alternados, ternos e tristes, eternizou em poemas tórridos a amante Hostia, com o nome fictício de Cíntia. As cenas carnais transcorriam em vestíbulos suntuosos, arcos, colunas, estátuas, escadarias de pedra.

No século 4, o indiano Vatsayana Kamasutran escreveu “Aforismos sobre o amor”. Eram pequenos textos sobre o comportamento sexual humano, que as traduções passaram a ilustrá-los e se tornou as “Cem melhores posições sexuais de Kama Sutra”. Ode ao contorcionismo. Mais academia de ginástica do que cama de motel.

Os apelos da carne também aparecem em civilizações antigas do Sul da Ásia, a Índia, as dinastias da Pérsia, árabes do Oriente Médio. Pessoas cobertas por mantos andejam a pé, a cavalo, de camelo, em desertos, as muralhas defendem cidades de pedra, labirintos, edificações de vários andares, minúsculas habitações, como colmeias de abelhas. As oligarquias em palácios suntuosos com influência egípcia e indiana, a pureza das linhas, colunas com capiteis em formato de animais, elementos estranhos, paredes revestidas de azulejos esmaltados tão perfeitos que parecem em baixo relevo. Nestes ambientes transcorrem “As mil e uma noites”, escritas pelo árabe Hazár Afsána, no século 9.

Fragmentos de um manuscrito foram resgatados e traduzidos em todas as línguas, adaptados e acrescidos. A história de Xariar, rei da Pérsia. Ele descobre que a esposa o traiu com um escravo. Mata os dois. A partir de então, assassina todas as mulheres após transar, à noite, para que não seja traído ao amanhecer. Até que Sherasade resolve tentar poupar a própria vida contando uma longa história, o fim adiado, arrastada, labiríntica, fantasmagórica, religiosa, heroica e, sobretudo, erótica. Ele acorda com o nascer do sol e Sherasade ao seu lado. Na noite seguinte ela lhe conta outra história para não morrer, e assim se repete por 1.001 noites. O rei talvez não tenha recuperado a confiança nas mulheres, mas não consegue mais viver sem o corpo da princesa e sua fértil imaginação. O livro de Hazár só chega ao Ocidente nove séculos depois, na primeira tradução para o francês do orientalista Antoine Galland, que levou 13 anos para concluir (1704-1717). O filme italiano de Pasolini, em 1974, é concebido a partir das histórias de Sherasade, com mais nu masculino do que feminino e homossexualismo simbólico, em gestos, olhares, relações ambíguas e violenta castração.

A jovem apalpada por dois velhos (Mieris 1662-1747)

A jovem apalpada por dois velhos (Mieris 1662-1747)

Na arte helenista, o nu aparece na pintura de vasos. Pinturas obscenas foram encontradas nas escavações de Pompeia, no sul da Itália, soterrada por duas erupções do vulcão Vesúvio, em 63 e 79. Tinha 30 mil habitantes, ruas bem alinhadas, passeios, chafarizes, sistema público de esgoto. Uma civilização avançada que escondia nas paredes internas das residências pinturas de cenas de sexo e orgias. Para retratar ou incentivar relações. Na concepção sacra de Michelangelo, os seres no céu da Capela Sistina estão sem roupas. Mas ele se supera, mesmo, ao esculpir Eos Aurora. Asseguram: se você passa de leve a mão nas nádegas e nas pernas de pedra, sente a celulite da deusa.

A partir do século 17, o apelo da carne está presente na arte clássica. Os holandeses David Teniers (1610-1690) e Willen van Mieris (1662-1747) deram especial atenção. Um quadro de Teniers sintetiza a máxima do erotismo que é ver a cena do ponto de vista de um terceiro. O patrão acaricia a jovem empregada e outra serviçal, bem mais velha, espia atrás da porta. Em Mieris, jovem nua é apalpada por dois velhos.

A decadência moral do Império Romano é o principal tema das pinturas do francês Thomaz Couture (1815-1879), no século 19.  Duas telas são clássicas. Uma é “Jovem veneziano depois de uma orgia” (1840), pintura vigorosa e brilhante. A outra são os “Romanos da Decadência” (1847). A orgia retratada acontece em templo retangular, com arcos do triunfo, estátuas ao alto, algumas de toga, escandalizadas, e outras despidas como o público. Em semicírculo mais alto, mantos jogados, homens e mulheres, roupas esgaçadas, se engalfinham, peitos, bundas, pênis descobertos.

Cena semelhante pode ser visualizada na literatura em “120 Dias de Sodoma e Gomorra”, do Marquês de Sade (1740-1814). O livro descreve uma maratona sexual em texto poluído, cansativo, intermitente, sem nenhuma fantasia. No entanto, “Filosofia de Alcova”, do Sade, apesar de cruel, é um primor de erotismo.

Na literatura contemporânea, os livros têm altos e baixos, píncaros e apelações. O inglês D.H. Lawrence (1885-1930) é um clássico com “O amante de Lady Chatterley”. Autor de outros romances e contos, ele está na antologia de contos eróticos realistas, intitulada “Amor e sexo” (traduzida no Brasil como “As adúlteras”, somos ridículos). Na obra figuram, simplesmente, Guy de Maupassant, Boccacio, Honoré de Balzac, Emile Zola, Casanova e os brasileiros Miguel Torga e Humberto de Campos, que escreveu “A champanha” com o pseudônimo de Conselheiro X.X.

Nos anos 1980, a inglesa Jane Purcell resgatou as memórias eróticas na francesa Anne-Marie Villeff Franche, escritas nos anos 1920, em Paris, sem sucesso comercial. Descrevia como mexerico e para se divertir as aventuras sexuais de seus amigos, muitas das quais contatas pelos próprios protagonistas, para que ficassem eternizadas. São muito interessantes, relatadas com olhar feminino. Os três volumes foram intitulados “Prazer de Amor”, “Joias de Amor” e “Folias de Amor”. O melhor conto é um sedutor que manipula uma mulher casada em locais públicos, obrigando ela desfilar nua por baixo do casaco, mas ela vira o jogo num restaurante.

A também francesa Anaïs Nin (1903-1977), bem casada, marido rico, mas que circulava no meio artístico de Paris, acabou escrevendo livros eróticos com base em seu círculo de amigos e o comportamento liberal entre uma guerra mundial e outra, do adultério à bissexualidade. Contos escritos nos anos 1940 e reunidos em “Delta de Vênus” é seu livro mais famoso. Também ficou pública sua relação amorosa com o escritor americano Henry Miller (1891-1980), que ela chegou a sustentar em seu início difícil de carreira em Paris, tema de filme “Henry e June”. O amante ficou muito mais famoso do que ela com “Trópico de Câncer” e a trilogia “Sexus”, “Plexus” e “Nexus”, de difícil leitura, num texto que se enreda na narrativa.

Outro americano, Harold Robbins, vendeu muito no Brasil, nos anos 1960 e 1970, com uma estratégia de marketing falsa, mas que se revelou perfeita. Na capa, em destaque, aparecia “Tradução de Nelson Rodrigues”. Somente em 1992, quando Ruy Castro publicou o “Anjo Pornográfico”, ficou-se sabendo que o notável dramaturgo não traduziu nenhum volume, até porque não sabia inglês, e apenas vendeu a utilização de seu nome. Em “The Betsy” (traduzido como “O garanhão”, meu Deus!) tem uma cena fortíssima em que o sogro estupra a nora que amamentava o neto, numa relação de violência e paixão recíproca.

Nelson é apresentado como maldito, tarado. A qualidade de seu texto é indiscutível, mas nunca conseguiu ser erótico. Suas descrições de sexo são cruéis, dramáticas, escatológicas, mais para punir do que despertar prazer. No fundo, ele era conservador em suas posições políticas e moralista no comportamento. Diz que é o maior imitador do Nelson. Eu!

"Romanos em Decadência" (Thomas Couture 1815-1879)

“Romanos em Decadência” (Thomas Couture 1815-1879)

O americano Charles Bukowski é outro exemplo. O sexo nele é cru. Pode até aparecer alguma situação mais complexa de personagem feminina, mas ele mesmo se encarrega de retirar qualquer dissimulação ou encantamento. Eventual traição é desmistificada na lata, em ambiente decadente, bebida exagerada, diálogos ásperos e chocantes, cópula mecânica, simples “bombadas”, cortes nos pés em cacos de garrafas.

Nos anos 1960 e 1970, a brasileira Adelaide Carraro vendeu livros de sexo no país. Mas além de escrever muito mal, apenas reproduzia situações no submundo, nos cabarés. O prazer pago. As revistinhas ilustradas do Carlos Zéfiro tinham muito mais luxúria. A vizinha, a freira, a prima, a viúva.

Na literatura contemporânea, as mulheres estão dando as cartas. Nos anos 1980, a publicitária de Nova York, Maxine Paetro, escreveu “Amor Plural”, uma visão feminina americana num texto intimista, enxuto, bem elaborado. Suas seguidoras, hoje, são mais escancaradas e apelativas. A mesma ideia da mulher se entregar para o homem rico, lindo, sedutor, com brinquedinhos de sex shop, como nos “Cinquenta tons de cinza” de E.L. James e suas continuações “Cinquenta tons mais escuros” e “Cinquenta tons de liberdade”. Presente igualmente nos livros de Sylvia Day e seus nomes criativos, também nada repetitivos: “Toda sua”, “Profundamente sua” e “Para sempre sua”. Bem mais complexo é “Garota exemplar”, de Gillian Flynn, onde a mulher é a bandida. Li apenas Maxine, os outros consultei de “orelha” e no último, vi o filme. Presente, em todos, o imaginário capitalista de beleza.

O erotismo vai muito além do belo. No filme “Sex Tape – perdidos na nuvem” (2014), a maravilhosa Cameron Diaz aparece nua três ou quatro vezes. Acredito que pagaram um alto cachê para ela tirar a roupa. E daí? É uma comédia e sexo é coisa séria. O cinema nacional e programas de televisão apelativos caem no mesmo erro. Podiam aproveitar a linda bundinha da Cameron e a colocar numa trama de desejo e entrega. A mulher casada Maryl Streep, apenas descalça, quando vai conversar com o fotógrafo aventureiro Clint Eastwod, no filme “As pontes de Madison” (1995), é uma cena muito mais erótica.

Assim como Horácio, que do alto do seu saber não resistiu à tentação de escrever poemas eróticos, dois prêmios Nobel de Literatura, latino-americanos, seguiram o mesmo caminho. “Memória de minhas putas tristes”, de Gabriel García Márquez, tem cena forte de sexo anal com a empregada idosa. Em “Elogio à madrasta”, de Mario Vargas Llosa, o menino transa com a segunda mulher do pai, enquanto ele corta os pelos do nariz. A simulação da forma humana em situações de extremo desejo carnal é um embate de vida e morte, muito siso e pouco riso, e deve ser apresentada com ardil e significado, como nos poemas de Mimnervo para descrever as relações íntimas imaginárias de Alceu e Sapho, 2600 anos atrás. Assim procuro fazer nos meus romances “Sombras Douradas” e “Acrobacias no Crepúsculo”, na novela “A Santa sem Véu” e “Contos do tempo da máquina de escrever”. O erotismo é usado para dar prazer aos leitores, como parte de um processo em que todo o texto é concebido com simplicidade, clareza, frases diretas, a leitura sempre andando para a frente, rápida e fácil, a complexidade surge apenas no piscar dos olhos.

(*) Ensaio inédito escrito por Tibério Vargas Ramos especialmente para o site. Novembro de 2015.

Publicado em 2/11/2015
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