Tibério Vargas Ramos
Ensaios
O comandante Ramos
Nome do Aeroporto Federal de Alegrete, RS

 

Cartum de Estigarríbia (Reprodução/ Arquivo Família)

Formado piloto na primeira turma, em 1943, com 35 anos (Arquivo Família)

Pilotou até 1987, aos 80 anos de idade (Arquivo Família)

Pilotando o Cessna nos anos 1950 (Arquivo Família)

Ramos com Eva Perón, na Revoada de Buenos Aires, em 1952 (Foto Lacy Guterres)

Ramos e Torcelli na revoada de Punta Del Leste, 1956, réplica do 14-Bis (Família)

PP-GTO, outro CAP-4 de instrução (Arquivo Família)

Em Uruguaiana, passeios a cavalo (Arquivo Família)

Botas de cano longo, não usava bombacha, mas culotes, e lenço chimango

Com a Conceição, no Clube Casino (Arquivo Família)

Na Rua da Praia, em Porto Alegre (Arquivo Família)

Aniversário de um ano da Maria Luiza (Arquivo Família)

Ramos e Conceição, Bodas de Prata, 1972 (Arquivo Família)

Ramos com a Conceição e os quatro filhos, Tibério, Maria Luiza, Yara e Eduardo

Homenageado pelo Aeroclube do Rio Grande do Sul como o piloto mais antigo em atividade, em novembro de 1984 (Arquivo Família)

1977, com a Medalha Santos Dumont (Arquivo Família)

Aos 80 anos, pilotando o RCS. Quando ele morreu, o avião bateu asas ao redor do túmulo, em despedida ao velho comandante (Arquivo Família)

Aeroporto de Alegrete (Foto Divulgação)

Aeroclube de Alegrete (Foto Divulgação)

Memória: relíquia preservada (Foto Site)

Tibério Vargas Ramos

Gaudêncio Machado Ramos, nome do Aeroporto Federal de Alegrete, no Oeste do Rio Grande do Sul, Brasil, a pouco mais de 100 km das fronteiras da Argentina e Uruguai, foi piloto, instrutor de aviação, funcionário público estadual da Fazenda e jornalista: redator da Gazeta de Alegrete e correspondente local do Correio do Povo de Porto Alegre por 25 anos. Nascido em Uruguaiana, 12 de julho de 1907, morreu em Alegrete, 30 de outubro de 1999, em sua casa, na Rua Mariz e Barros, às 10h30min, aos 92 anos de idade.

Morando em propriedades rurais em Uruguaiana, chegou a ser tropeiro na adolescência. Ele entrou na Mesa de Rendas (encarregada de tributos estaduais) em 1927, como marinheiro na fiscalização da Barra do Quaraí, tríplice fronteira Brasil-Uruguai-Argentina. Continuou estudando, fez concurso para escriturário, em Porto Alegre, e foi aprovado. Trabalhou na Exatoria Estadual em Uruguaiana, São Luiz Gonzaga e Alegrete. Íntegro e honesto, durante muitos anos foi tesoureiro. No tempo em que os tributos estaduais eram pagos diretamente na Exatoria, com a compra de selos para a colocação nas guias de arrecadação. O caixa ficava cercado de grades. Ao alcance da mão tinha um revólver Smith & Wesson niquelado, calibre 38, cinco balas, cano de deslocar como nos filmes de faroeste, uma joia rara, mas nunca precisou usá-lo. Quando o filho homem mais velho ainda era adolescente, ensinou-o a atirar com aquela arma contra um muro velho de tijolos assentados com barro, no fundo do pátio. “Agarra firme, quando puxares o gatilho vai dar um soco para trás”, alertou. A emoção do primeiro tiro. Ambos não mataram ninguém, nem pássaros. O revólver em defesa da vida. Aposentou-se com 35 anos de serviço no cargo máximo de exator.

Ramos chegou a Alegrete em 1938 para trabalhar na Exatoria. Adotou a cidade para o resto da vida. Fez amigos, conquistou o respeito da comunidade. Casou, em 1947, aos 40 anos de idade, com a professora alegretense Conceição Vargas Ramos, de 28 anos, e o matrimônio durou para sempre, 52 anos, até que a morte os separou. Não como o padre preconizou, pois casaram na Igreja Metodista, abençoados por um reverendo. Teve quatro filhos (Yara, Tibério, Maria Luiza e Eduardo), netos e bisnetos. Tinham uma vida social moderada, iam a jantares sociais, bailes. De terno e gravata, já de cabelos brancos, Ramos dançava com a Conceição todos os ritmos, predileção por tangos, mais ele do que ela. Cego, com o coração batendo mais devagar, ele tinha muito desejo de comemorar as Bodas de Ouro. Uma marca difícil de chegar, não só pela convivência imposta, mas também pelo fato de ter casado com 40 anos. “Será uma data definitiva”, dizia. “Não, será significativa”, Conceição o corrigia, num debate semântico, digno de uma professora.

Somente em Uruguaiana, na família, afinal todos eram Ramos, ele era chamado de Gaudêncio. “O Profeta”, como dizia o sobrinho Miguel Ramos, ator de teatro, em tom jocoso, porque o tio se considerava responsável pela família por ser o mais velho, e dava conselhos. Quando Artur e Nacica, pais de Miguel, completaram Bodas de Ouro, numa festa em Porto Alegre, ela disse que estavam comemorando aquela data graças ao Gaudêncio, “ele tinha que ter vindo”, lamentou. No domingo à tarde, já sem visão, ele pedia para a Conceição discar para todos os irmãos que continuavam vivos. Um dos telefonemas era para a irmã Aracy, em Assunção, no Paraguai. Com Alzheimer progressivo, ela estava perdendo por completo a memória. “Aracy, aqui é o Gaudêncio”, ele se identificava. “Não conheço nenhum homem de Uruguaiana”, ela respondeu num breve momento de memória que a ciência não explica, mas resquícios do passado, sim. “Pelo menos a Aracy está bem de saúde”, desligou o telefone com imensa tristeza. Em Alegrete, sempre foi identificado pelo sobrenome. Até a esposa o chamava de Ramos; “Xiru” na intimidade.

Além dos trabalhos físicos desde garoto, no campo, ele praticou esportes diferentes na cidade, como esgrima e exercício em barra. Com mais de 50 anos, eu tinha 10, 12 anos, ainda dava show numa barra que o aviador Pedrinho Passos instalou nos fundos do hangar. Jogador de basquete, bronzeado e musculoso, como ninguém era na época, Pedrinho fez vir abaixo o Cinema Glória quando a plateia o identificou como um dos figurantes num filme nacional, pouco tempo depois dele ter ido morar no Rio de Janeiro. Era uma figura, vaidoso, muito bem vestido. Com 70 anos, o pai ainda fazia levantamentos leves do corpo com os braços, na armação de ferro da parreira, antes de tomar banho. Em momentos de maior descontração, no final da tarde, cantava árias de óperas no chuveiro. Quando se encontrava em Porto Alegre e alguma ópera estava em cartaz, procurava comparecer. Óperas e tangos eram seus gêneros musicais preferidos, tudo a ver no apelo trágico. Os dois filhos mais velhos assistiram pela primeira vez na companhia dele. “A Yara beliscava o meu braço, emocionada”, lembrava. O outro filho assistiu com ele, em 1967, à primeira ópera encenada no Auditório Araújo Vianna, no Parque da Redenção, com 4.500 lugares, sem cobertura. Antigamente, Ramos se hospedava em Porto Alegre no simples e razoável Lagache, na Rua Marechal Floriano, no centro. O filho estava morando numa “república de estudantes”, se preparando para o vestibular de Jornalismo. À noite, ele foi jantar com o pai no hotel. Foi um dos melhores filés que ele comeu; mais que o paladar, eu sei, é a saudade.

A mesada para o filho que morava na Capital era enviada numa conta no Banco da Província. Sempre quis que ele tivesse dinheiro no bolso, antes a quantia fixa era dada no sábado para ir a bailes e pagar o cinema para as namoradas, sem dinheiro extra durante a semana para aprender a poupar e administrar suas finanças. Mais tarde, quando já morava em Porto Alegre, depositada mensalmente para a comida, o aluguel, a compra de livros, moderada diversão. Como obrigação, estudar, passar de ano. Deu certo. No segundo ano da faculdade, 1969, já era repórter da Zero Hora, sem nunca ter trabalhado antes. Aposentou-se com 48 anos de exercício profissional ininterrupto, como jornalista e professor. Marcado na paleta pela responsabilidade.

O Aeroclube de Alegrete foi fundado em 28 de junho de 1940. Ramos começou a pilotar em 1942 e completou o brevê em 1943, na primeira turma formada na cidade. Tornou-se instrutor de voo em 1954, ao prestar exame no Rio de Janeiro, realizando prova inclusive de acrobacias, como o bucólico parafuso, tonneau e loop. Contudo, era um piloto cuidadoso e responsável, exímio num pouso de pista lambendo o chão de Alegrete com o carinho de quem ama a terra que adotou. Ele participou de duas revoadas históricas, realizadas por pilotos civis do Cone Sul. Em 1952, Ramos esteve no encontro de Buenos Aires. Na ocasião, encabeçou uma comissão de pilotos brasileiros recebidos por Eva Perón, na Casa Rosada, sede do governo. Em 1956 participou da revoada a Punta Del Leste, no Uruguai, quando posou para uma foto diante do 14-Bis de Santos Dumont. Chegou a ter um avião particular, um Stinson, Model 10, aeronave americana da década de 1940, quatro lugares, estrutura de tela e motor Continental. Pesadão, precisava muita pista para decolar. Foi instrutor até 1984, aos 77 anos de idade, e pilotou até 1987, aos 80 anos. Deixou de pilotar quando foi reprovado no exame médico ao ser diagnosticado problema nos olhos. O filho estava com ele naquela manhã, na Força Aérea, em Canoas. Eu o levei de carro. Não soube o que dizer para consolá-lo. Um dia teria de parar, era óbvio demais. Saímos em silêncio, solidários.

Diz a lenda que Ramos nunca teve acidente aéreo. Não é verdade. Ele realizou dois pousos forçados com avaria das aeronaves, apesar de não sofrer ferimentos. O primeiro foi com o Cessna 170, quatro lugares, quando fazia a aproximação para pouso numa pista improvisada numa fazenda, em Alegrete. O sol caía no horizonte e só quem mora no oeste sabe como os últimos raios são fortes, ofuscantes. Na BR-290, a estrada pode desaparecer por instantes. Ele imaginou que estava mais baixo, tirou o motor para as rodas rolarem no campo, mas o avião voava mais alto e caiu no vácuo. A data exata é imprecisa. Em 1956, Ramos foi morar na casa do sogro, com a família. Eduardo Vargas estava fragilizado, com problemas cardiovasculares. Morreu dois anos depois, em 1958. Lembro-me de muitos pilotos no pátio, à noite, a luz da área acesa, eram anos 1959 ou 1960. Tinham ido levar solidariedade. Ramos estava desolado por se acidentar com o Cessna. O melhor avião do Aeroclube era como um filho predileto. Falava até em deixar de pilotar. Os colegas tentavam demovê-lo, “acontece”, o argumento.

Algum tempo depois, o instrutor teve de fazer um pouso forçado no campo durante uma aula de aviação com a Ivone. O CAP-4 sofreu uma “pane seca”, corte no combustível. A gasolina de aviação era distribuída em tonéis e as aeronaves abastecidas com um carro-tanque com acionamento manual. A injeção de gasolina, no motor, tinha de ser drenada diariamente para a retirada de resíduos provocados pela operação rudimentar. Durante o voo, um resíduo no acesso ao carburador podia cortar o motor. Ramos conseguiu bater de leve na copa de uma árvore para reduzir a velocidade do Paulistinha. Apesar dos danos no trem de pouso, estrutura e nas asas, instrutor e aluna não sofreram ferimentos quando o avião bateu no solo. A aeronave pôde ser recuperada.

Em 17 de novembro de 1973, escrevi matéria no Caderno Fim de Semana da Folha da Tarde, intitulada “O velho comandante da aviação civil gaúcha”, ilustrada com cartum de Cantalice Estigarríbia, ex-aluno no brevê de aviação. Artista plástico e coronel de Cavalaria, ele é autor de reconhecida coleção de aquarelas sobre fatos históricos do Exército Brasileiro. O militar paraibano foi comandante do 6º Regimento de Cavalaria, em Alegrete, onde casou pela primeira vez com a bela jovem Ana Maria. Desenhista talentoso desde o tempo de Ginásio Marista, somente depois de se reformar na carreira militar Estigarríbia fez Belas Artes e especialização em História do Exército para qualificar sua obra. Em um parágrafo relatei, na Folha, a experiência de Ramos como instrutor de mulheres na aviação:

“Ensinar mulher a pilotar, Ramos – que brevetou três – considera um caso à parte: “O instrutor precisa transformar a donzela numa índia guapa”. Pois o piloto, diz o velho, deve ser delicado, mas não ao ponto da meiguice. Ter atitudes, gestos precisos, oportunos e não débeis ou vacilantes. Segurar o manete e o manche com a mão firme e não com os “dedinhos” como quem se serve de um doce na bandeja. O aviador precisa acionar os pedais com precisão e não com pés de balé.”

Terminei, assim, o artigo: “Convivi 18 anos com o Ramos, mas há sete só nos encontramos de vista. Entretanto, daqui de Porto Alegre continuo acompanhando a dinâmica atividade daquele baixinho magro, quase sempre carrancudo, de 66 anos de idade e 30 de dedicação imensa ao Aeroclube de Alegrete. E cada vez mais sou fã do velho comandante da aviação civil gaúcha, meu pai. (Tibério).” (Assim assinei o texto).

Em 12 de julho de 1983, quando ele completou 75 anos, publiquei crônica no Correio do Povo, com o título “Vivendo nos ares”. Concluí o texto: “Hoje, ao completar 75 anos, o comandante Ramos, detentor da Medalha Santos Dumont, continua em plena atividade, como instrutor de aviação no Aeroclube de Alegrete, transmitindo sua grande paixão, a ensinar homens e mulheres a viver nos ares. É um exemplo de amor à vida para todos e um orgulho para nós, meu pai. (T.V.R)” Assinava a coluna com as minhas iniciais.

Apesar de ser um visionário, dedicado à aviação quando o automóvel ainda se aprimorava, Ramos tinha convicções conservadoras, tanto no comportamento pessoal, quanto social e ideológico. Sem nunca ter disputado cargo político. Posições firmes como cidadão. Chimango, formado no positivismo de Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros, na primeira metade do século 20, permaneceu legalista e governista a vida toda. Pela cor do lenço, nunca foi do maragato Partido Libertador, mesmo que tenha votado muitas vezes em seus candidatos por afinidade ideológica. Ele filiou-se à UDN – União Democrática Nacional, do brigadeiro Eduardo Gomes, por natural identificação com a aviação. Udenista e a esposa trabalhista, rivais na cena brasileira à época, jamais discutiram política. Cada um votava de acordo com suas convicções, muitas vezes no mesmo candidato no âmbito municipal, quando valia mais a confiança e amizade. Com a maturidade de 12 anos de diferença entre eles, dedicação e profundo respeito de um pelo outro, cada um com suas vidas próprias e profissões, nunca brigavam, até porque a Conceição era conciliadora por natureza, protetora do marido e dos filhos. As divergências políticas dele com o filho homem mais velho se dissiparam por completo com o tempo. Quintana dizia que percebemos que envelhecemos quando nos olhamos no espelho e enxergamos o rosto do pai.

No início do regime militar, possivelmente 1966, porque eu ainda morava em Alegrete, os quartéis realizavam muitas manobras para demonstração de força. A cidade com quatro unidades era um prato cheio. Foi programado um ataque simulado às guarnições locais do Exército. Um oficial, em trajes civis, procurou o pai no Aeroclube e pediu para falar com ele em particular. “Seu Ramos”, o capitão bateu continência por hábito, apresentou-se e explicou que “forças inimigas”, organizadas pelos próprios militares, estavam programando um ataque aos quartéis e solicitava a ele que participasse do simulacro, como Força Aérea dos adversários, jogando papel picado no Regimento de Cavalaria, centro de operações, por ficar no alto de uma coxilha, junto com a Infantaria, com toda a visão da cidade. A Engenharia, entre o rio e os trilhos, era por si só a defesa mais vulnerável. As Comunicações, perto do Cemitério, tinha pequeno contingente, com função apenas estratégica. No dia combinado, Ramos causou a surpresa. Sobrevoou a Cavalaria e jogou papel picado. “Eles disseram que o avião foi logo abatido pela defesa antiaérea, logo após soltar a bomba”, sorriu ao contar a façanha somente depois de realizada porque o segredo era a arma do inimigo. Ficou como o dia em que um quartel foi atacado com papel picado no início da ditadura.

Nunca andou de bombacha, nem de alpargata. Para montar a cavalo, usava culotes e botas pretas de cano longo. Gostava de calçar botas, tinha também de cano curto, marrom, colocadas por baixo da calça de brim algumas vezes, inclusive para pilotar. Como todo o aviador não dispensava boné, jaqueta de couro e óculos escuros. A camisa tinha de ter bolso para colocar a caneta e os óculos. Asceta, sem vaidades, mas quando o bigode começou a branquear, raspou. No inverno rigoroso, chapéu de feltro, sobretudo e polainas para ir à Maçonaria na terça-feira à noite. Não frequentava missas, mas dizia-se católico. Como aos domingos estava sempre no hangar do Aeroclube, somente eventualmente acompanhava a esposa à Igreja.

Simples, sem sofisticações, ele comia de tudo, refeições caseiras. Chamava churrasco de assado e tinha preferência por costela bovina, carne de ovelha e linguiça, feitos na churrasqueira e prontos pontualmente ao meio-dia de domingo, metódico. Comia sobremesa somente quando “apetecia”. Jamais se passava na alimentação, não sofria do pecado da gula. Em ocasiões especiais, de confraternização, tomava uma caipirinha, um copo de cerveja, um vinho simples, no fim da vida acostumou-se com um cálice antes do almoço. Depois da refeição, sesta rápida, diária, exigindo a casa em completo silêncio naquela hora sagrada. As crianças tinham de ir para o pátio. Minha mãe chegou a passear de ônibus com os netos na hora do cochilo do pai. Na manhã seguinte, comia sobra do churrasco no café da manhã, cortando a carne fria, retirada direto do refrigerador. Uma vez por semana, somente e infalível, dois ovos fritos no desjejum, até o final da vida. Não dispensava, jamais, o chimarrão, que se referia como mate, um palheiro e cigarro de maço somente à noite, depois do cafezinho, extremamente disciplinado.

Hábito da leitura, o infalível Correio do Povo, preferência por obras históricas ou livros de aviação. Estão todos guardados na casa de Alegrete. Quando ficou cego, minha mãe lia para ele. Ouvia televisão, caminhava à noite atrás de um sofá comprido, ida e volta várias vezes, para exercitar as pernas, sem nunca se queixar de ter perdido a visão. Um comandante de fibra em seu labirinto. A bisneta Amanda, pequena, acordava assustada à noite, na casa de Alegrete, dizendo que havia ouvido o “biso” caminhando na sala, quando ele já havia morrido. Naquela mesma sala da lareira, na penumbra, eu vi, menino, meu bisavô Cassiano de Assis Pacheco se balançando na cadeira de balanço. Somente a minha avó Odith, filha dele, acreditou em mim, e a Maria Luiza, garotinha, quase morreu de susto. Os dois casos podem ser frutos da imaginação de crianças com medo do escuro.

Ramos levou dois fortes trancos na vida. O primeiro em 1974, quando o filho mais moço foi assassinado. Seguiu com bravura, mas se tornou mais frágil. O glaucoma lhe tirou a visão de um olho, continuou até dirigindo o Fiat 147. Aos domingos, ia com a Conceição e a sogra, dona Odith, saborearem um galeto no Q Brasa, o passeio dos três idosos sozinhos em Alegrete. Mas em 1992 perdeu a visão por completo. Envelheceu 20 anos em um dia. Caminhava na Praça de Alegrete com uma acompanhante, cumprimentado pelas pessoas, reconhecia pela voz. Solícito, procurava conversar, o olhar para onde deveria estar o vulto invisível. Quando ia tomar banho, pedia o “sabonete preto”, preferência pela fragrância do Phebo, desde o tempo em que enxergava.

Em 1982, em Encontro da Aviação, em Bento Gonçalves, RS, foi homenageado como o piloto mais antigo do Brasil em atividade, 40 anos, desde 1942. Na ocasião, foi entrevistado para o Fantástico, programa dominical da Rede Globo. Realizou um voo panorâmico no velho Cessna 170, quatro lugares, do Aeroclube de Alegrete, com a repórter Regina Lemos e o cinegrafista. Como já era um homem de 75 anos, por cautela, era uma das características dele, fez questão de levar como copiloto Sérgio Dorneles. Em solenidade, à noite, proferiu um discurso de agradecimento, previamente escrito, lembrando sua longa dedicação à aviação civil, à formação de novos pilotos e abnegação especial ao Aeroclube de Alegrete e suas históricas dificuldades operacionais. Defendeu a aviação como um sentido de vida e realização pessoal. Dois anos depois, em novembro de 1984, voltou a ser homenageado como o “mais antigo” pelo Aeroclube do Rio Grande do Sul, no 1° Encontro de Aviões, na pista de Belém Novo, em Porto Alegre. Mais uma vez, aos 77 anos, ele compareceu no Cessna, prefixo PP-ACM. À noite houve um jantar de confraternização, onde ele recebeu um troféu.

Maçom desde 1945, Ramos chegou ao grau 33, venerável. Ao morrer, foi velado na Maçonaria Luz e Verdade de Alegrete, por insistência dos irmãos da loja. A família teve dificuldade em convencer um padre a comparecer no local para encomendar o corpo, até que um se dispôs. A cerimônia católica se realizou entre os maçons e demais pessoas, sem qualquer incidente, como era de se prever. Quando o féretro saiu, na direção do cemitério local, havia grande acompanhamento de carros e uma revoada de seis aviões, voando em linha. O cortejo das aeronaves era puxado pelo velho RCS, o Paulistinha CAP-4 em que ele dava aulas. Na hora do sepultamento, o piloto do CAP-4 fez coordenação, como o bater de asas dos pássaros, num gesto de despedida ao velho comandante. Não foi um momento de tristeza, mas de muita emoção. O enterro de Gaudêncio Ramos se transformou numa celebração a sua longa vida de aviador. Conceição sobreviveu 23 anos a ele, faleceu aos 103 anos (1919-2022).

O Aeroclube e Aeroporto de Alegrete foram transferidos de seu local original em 1989, quando Ramos não pilotava mais. A antiga área hoje é utilizada para construção de prédios públicos e a Universidade. A escola de aviação, na saída para Uruguaiana, continuou pujante, sob o comando do ex-aluno Fernando Guerra, com acréscimo no número de aviões, mas o Aeroporto permaneceu inativo durante 42 anos. Até que foi remodelado, com pista maior, pavimentada, e reinaugurado em 2 de agosto de 2021, com o nome de Gaudêncio Ramos, uma homenagem da cidade ao seu aviador mais antigo, 80 anos atrás.

Publicado em 21/2/2023
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