Tibério Vargas Ramos
Ensaios
A letra impressa
Livro publicado pela PUCRS em 2010

Livro publicado pela PUCRS em 2010

Tibério Vargas Ramos

A palavra é a arte mais abstrata e o amálgama das diversas formas e tendências das manifestações humanas, reproduz os seres vivos em geral, animais e plantas, a natureza, as edificações, o cosmos e Deus. Pequenas letras negras no papel podem adquirir amplitude infinita no cérebro das pessoas. O realismo das artes aparece na frase ao construir o concreto; o impressionismo, na interpretação; e o expressionismo, na opinião do autor e seus protagonistas. Apresenta-se com plasticidade, som, musicalidade. Vai do tambor de lata do anão Oskar, branco e vermelho, afirmativo, melancólico, memorial e revoltado em Günter Grass (1927, Nobel 1999), à batida do rock, ao lamento do jazz, à dor do bolero, à sensualidade do tango, à sexualidade do samba, ao balanço do hip hop ou ao esplendor da orquestra sinfônica. Tem a elegância da alta costura, a leveza da seda ou a crueza dos farrapos das ruas, o fedor dos esgotos, brilhante e escatológico. Ela traz consigo o afago da mão e a força dos punhos, o rugido do leão na noite africana e a suavidade das borboletas na primavera. Basta a seleção dos vocábulos e o uso apropriado da pontuação. Sem erro.

Ela reconstrói ambientes e espaços vazios. A cor, a luz e as sombras. A imagem estática ou em movimento, mas vai além do cinema. Tem odor e perfume. Desperta os sentidos com ruídos e trovões. O bater de asas, a ira dos homens e da natureza. O ranger de uma escada e o desabamento de um edifício. A chama do fósforo que acende o cigarro e o incêndio devastando a floresta. O tropel de um cavalo, a colisão de carros. A lancha voadora na curva do rio, os peixes que saltam em cima da água, o navio e o surfista que quebram as ondas do mar, o submarino que desliza e a embarcação que afunda, o homem que nada e o afogado, coitado, olhos abertos, a água invadindo o corpo pela boca, narinas, ouvidos, todos os poros. Meu Deus!

As letras sobem aos céus para mostrar os aviões cruzando as nuvens, o céu de brigadeiro, a tempestade, a queda, a explosão na floresta. São singelas como o choro e o sorriso do bebê. A mulher linda, estonteante, “em rodopios nítidos, criando vácuos onde morrem as aves”, como diz Vinícius de Moraes (1913-1980), ou pobre desdentado, crucificado, pedindo desculpas por importuná-lo, senhor. A palavra pode se tornar triste, angustiada e contrair a doença. Corta como a cirurgia ou a facada. Dispara como o tiro, faz o sangue escorrer. Pode ser o morto no velório, lívido, ou o cadáver na chuva, patético. A frase rodopia graciosa, imita o passo de dança, supera-se no vigor do atleta, transpõe barreiras. A queda, a bola perdida. A ovação da platéia, a vaia, o riso, a lágrima sentida na solidão, a melancolia, o desespero. O sofrimento e o alívio. Gracias a la vida.

A letra impressa, estática, acompanha a velocidade do foguete para decifrar os enigmas do universo, o satélite, a nave espacial. A cachorrinha na amplidão do espaço. Os olhos assustados a verem mais de perto as estrelas. Bate na retina, pisca, sonolenta. Roda, roda, no Sputinik 2 da então União Soviética. Está ficando tonta e fraca. Quanto tempo vai resistir? Minutos, horas, dias? Os cientistas russos precisam da resposta. Os olhos se fecham. O piscar das estrelas e o rastro luminoso dos cometas permanecem na retina da Laica, como se ela continuasse vendo a sala de Deus. O coração ainda bate, fraco. Condenada pelos homens a uma passagem só de ida, em 1957, meio século atrás, sem volta, sua viagem chega ao fim. Para de respirar. Deus, ao seu lado, no firmamento, passa a mão em seu pelo, tem pena do animalzinho, mas não quer julgar a criatura que o condenou. Os homens na Terra exultam. Jornais abrem manchetes enaltecendo a façanha. Missão foi um sucesso, a corrida espacial está só começando com os soviéticos à frente, os americanos tentam responder com o satélite Explorer 1, em 1958. Rumo a 2001, a odisseia no espaço.

Transmuta-se a palavra em compaixão, medo, coragem, devoção, perdão… assassinato. A alma e as mãos. Os lábios que murmuram a oração, a boca que cospe. O romance e o ciúme, a sensualidade, o sexo, o estupro. A carícia, o tapa, o beijo, o pontapé. A frase aprisiona-se na solidão e abre-se no alarido das multidões. A democracia, o totalitarismo, o livre-arbítrio. A ética, a transparência, o embuste, o roubo, a corrupção, a responsabilidade social, a preocupação com o meio ambiente, não estou nem aí – assim caminha a humanidade. Vamos juntos.

O Criador concedeu o livre-arbítrio, não pode intervir. Seria negar o dom maior que disponibilizou ao homem: a liberdade. Charles Darwin (1809-1882) descobriu na Teoria Evolucionista a lógica da vida, a construção permanente do universo. Contudo, raciocinou como homem, dia e noite, o relógio, e excluiu Deus de sua interpretação. Errou como a Bíblia. Deus não criou o mundo em seis dias e depois descansou. Como o Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, hoje reconhecido como uma das Sete Maravilhas do Mundo, ele abre os braços para a eternidade. Não há marcação de tempo. A evolução da vida, concebida por Deus, é constante, ininterrupta. Como diz o teólogo americano John F. Haught (1942), da Universidade de Georgetown:

“(…) o amor compassivo de Deus espalha-se de forma redentora e preserva, para sempre, cada momento da história evolucionista cósmica. (…) Um Deus, cuja a própria essência é ser o futuro aberto do mundo, não é um planificador nem um projetista, mas uma fonte infinitamente libertadora de novas possibilidades e de nova vida. (…) (seu) poder se manifesta mais plenamente na humildade e no desamparo” (2002, p.146, 147 e 165)

O homem chora, mama, rasteja e ergue-se. Fala, grita, corta, pinta, produz sons. Planta, arranca, desliza no gelo, mergulha na água, rola na lama. Corre, se arrebenta, salta, cai no precipício, voa. Sublima-se na música, no balé, pintura, escultura, arquitetura, fotografia, na representação cênica, no teatro, cinema, televisão. Todas as manifestações podem seguir tendências, experimentar, ousar, serem radicais, visionárias, cometer os maiores exageros. Não adianta. Nenhuma arte será mais completa e abstrata do que a palavra.

Aos seis anos de idade, no segundo semestre, você descobre que rabiscando umas bolinhas, umas perninhas retas e outras tortas, levantadas para cima, para baixo, para os lados, aquele desenho tão estranho que endurece os dedos, paralisa as mãos e faz você morder a língua, consegue, ao final, reproduzir a figura ao lado. O patinho feio colorido, o ovo, a uva. Enquanto os garotos jogam futebol e videogame, as meninas percebem, aos dez anos, que é possível reproduzir sentimentos com palavras. No diário, confessam amores e lamentam desilusões infantis. Está apenas começando um longo aprendizado. Depois dos recados, das cartas, dos telegramas e telefonemas, vêm os torpedos, e-mails, mensagens, chats, orkut, blogs, tuitter. A mensagem é a mesma, mas a tecnologia substituiu, com vantagem, pela amplitude e instantaneidade, o “próprio” que levava o recado, o carteiro, o fio, o código Morse.

Os escritores e os repórteres fazem confissões, simulam guerras, restringem os conflitos ao âmbito pessoal, a uma sala, a uma rua. Refletem sobre o cotidiano, o poder, a queda, o homem, a mulher, os desvios, o universo. Tanto a imprensa quanto a literatura não fazem história, são apenas indicativos, mas você pode conhecer melhor um povo e uma época pelos seus romances do que pelas notícias, singulares, descontextualizadas e aprisionadas pela lógica. A palavra permite ir além, viajar na imaginação, na fantasia. O pensamento é mais autêntico que o corpo. A imagem no espelho pode ser projetada pela revista alemã Der Spiegel (O Espelho), comprometida, politicamente correta, mas permite também refletir o abstrato, como no Retrato de Dorian Gray, em Oscar Wilde (1854-1900).

Cada obra literária estratifica situações e mentes. O relato é racional, sobrenatural, surrealista. Nas palavras, há drama, amor, ódio, culpa, desprezo, despeito. Ao abrirmos um livro, viajamos no tempo, no espaço, na cabeça de pessoas. Ao fechá-lo, aquelas impressões seguem conosco pela rua, sentam-se na mesa do bar, dividem conosco o vinho. Somos autores, atores, vítimas e testemunhas da trajetória humana, em um mundo real, mas menos verdadeiro do que a ficção em Ilusões Perdidas, de Honoré de Balzac (1799-1850).

No ofício de comunicador, sua ação fica restrita. Tem a tarefa de reproduzir o que aconteceu, conduzindo seus leitores para o local dos fatos, colocando-o diante de pessoas, políticos, pilantras, criminosos, administradores, empresários, investidores, operários, atletas, modelos, pedintes, vencedores, derrotados, heróis, vilões, sobreviventes. É mais que um contador de histórias. É um reconstrutor de realidades. Por isso, tem de ser verdadeiro. Caso contrário, sua matéria é simplesmente nada: uma fofoca de comadres ou uma reclamação de ressentidos, hoje ampliada nos posts das redes sociais.

A escrita, repito, é a mais abstrata das artes, mas, ao contrário das demais, só tem valor se for entendida. Não basta sensibilizar, inquietar ou agredir como uma composição plástica, estética. Se você não conseguir visualizar, sentir, se interessar, se comover, se emocionar, se indignar, o texto não possui nenhum significado. Não passa de uma sopa de letrinhas. É rápida de ser feita, instantânea, e com um pouco de sal dá até para digerir. Como a maioria das notícias burocráticas dos jornais, impessoais, sem autoria. Engana a fome, mas não alimenta, muito menos fortifica. Nada além de uma sopa sem gosto e infantil. A mensagem em 140 caracteres. Bem menos do que o olhar, o murmúrio, a carícia.

Esse é o ponto. Todo o esforço cognitivo na literatura, no jornalismo, no texto informativo e de divulgação, presentes na imprensa e em relações públicas, nos espaços de opinião, é no sentido de adquirirmos ferramentas para tornar uma arte abstrata em entendimento concreto, palavras com significado e orações que reproduzam situações e conhecimento. A frase sem compreensão, insisto, não existe. A partir desta constatação, começa todo o desafio de quem escreve.

Inicia-se pelo título. Não é um mero indicador de assunto. Deve chamar a atenção e orientar. Se você quer reproduzir uma ação, coloque verbo, no presente. Nada mais antigo do que o pretérito. Mas ele pode avançar além do fato. Nesse caso, use a interpretação, a metáfora, o trocadilho, a transposição entre a realidade e a ficção, a sobreposição de imagens, com a exigência de um subtítulo ou “olho” para explicá-lo. O bom título faz o leitor parar de folhear o jornal ou a revista, mas não é, ainda, uma garantia de que ele começará a ler o texto. Por isso, o jornalismo criou em seus quatro séculos outros pontos de entrada para a página. Lá aparecem a cartola que indica o assunto, o antetítulo que anuncia a manchete, o subtítulo que a completa, o “olho” que resume o que há para ler, os destaques no meio do texto, a legenda da foto, o infográfico.

Ufa! Ele baixou os olhos para o texto. A primeira frase tem de ser forte, incisiva, não decepcioná-lo. Mas não basta, o primeiro parágrafo é decisivo. Convencionou-se chamar de lead, comanda, define. É indispensável entender o conceito. Não se escrevem matérias por causa do assunto, mas pelo fato. Logo, o primeiro parágrafo não é uma explicação de um tema, mas o enfoque que determina sua indispensável publicação e a necessidade premente do receptor tomar conhecimento.

Apesar de eu procurar contestar o momento da criação apresentado no Velho Testamento, justamente para defender a existência de Deus contra argumentos da ciência, pode-se fazer um título e um lead da leitura tradicional da Bíblia. A ideia é desafiadora porque nos remete a um dos problemas diários enfrentados pelo texto de informação: o limite imposto pela versão. A informação pode ser precária, restringida pelo tempo e pelo espaço. Veja como ficaria:

 Deus descansa após criar

o Universo em seis dias

 No início, era a escuridão. O espírito de Deus se movia sobre um mar profundo. Um dia, Ele resolve criar a luz. No dia seguinte, divide a água. Parte evapora e forma o céu. No terceiro dia, faz porções de terra aflorar do fundo do mar e germinar plantas. No quarto, cria o dia e a noite, surgem os brilhos da Lua e das estrelas. Vem o quinto dia e com ele nascem os animais na terra, os peixes do mar e as aves no ar. No sexto dia, cria os seres humanos à sua imagem e semelhança, e os abençoa. No sétimo dia, Deus descansa.

 

A partir do título e do lead chega-se à conclusão óbvia de que o texto no jornalismo começa do principal, ao contrário de todos os outros impressos, como o próprio editorial, comentário, crônica, artigo, ensaio, resenha, crítica cultural, textos científicos, conto, novela literária, folhetim e romance que conduzem o leitor para o final. A primeira reação dos iniciantes é de que se eu disser tudo de mais importante no título e na abertura, a pessoa não vai seguir no texto. Errado. Ela nem para na página para ler se não lhe chamar a atenção. Se vai seguir até o final da matéria, é outro desafio. No caso da obra de Deus, resumida em poucas linhas, seu desdobramento é infinito.

Como descrevê-la no chamado “corpo do texto”? Não há um arquétipo. O jornalismo estabelece normas e regras apenas como orientação, balizadoras. Para conhecê-las, basta comprar manuais de redação e colocá-los ao lado, como as gramáticas e os dicionários que nos acompanharão ao longo da vida. Elementar. O importante, no entanto, é você entender o conceito.

A notícia e a reportagem devem ter um texto atual, sem expressões arcaicas, porque divulgam o novo. Como descrevê-lo com um texto do passado? Vocábulos eruditos até podem ser utilizados, desde que estejam na moda, não por pedantismo do autor. A frase terá de ser direta, clara, simples, ágil, sem ficar arrastada, derrapar ou perder a elegância. Desconfie do lenço no cabelo ou da cor da gravata, você pode estar piegas e cafona. Limpar o texto, nada de repetições de palavras, obviedades (por exemplo: fraturou as duas pernas; poderiam ser mais do que duas? Logo: quebrou as pernas). Defenda-se dos lugares comuns, frases acacianas, chavões, o rococó, expressões prontas, pronomes demonstrativos desnecessários. “Por outro lado”, “por sua vez”, “então”, “em prol”, “com certeza”, “já”, “veja bem”, “ou seja”, “a (em) nível”, “estou convencido”, “dialogar”, “não é?” são modismos ou vícios de linguagem como o “pero, contudo, por supuesto” dos castelhanos. Suprima ou use para enfatizar autoria ou ironizar. Não se repita, não preencha formulário. Ao relatar a notícia, construa um texto novo a cada dia, como ela. É instigante, desafiador.

A concisão, obsessão do jornalismo, não significa um texto minimalista. É imperioso suprimir o supérfluo para manter a descrição aparentemente irrelevante, o detalhe, que trará sabor à leitura. E o tempero está no domínio da pontuação, que dá ritmo, faz fluir o texto.

A veracidade é inegociável, pois sem ela não há informação. A objetividade é outro pressuposto. Só consigo comprovar o que digo, se apresentar dados concretos, capazes de pelo menos convencer. Ele está nervoso? Sim, não para de bater o lápis na mesa. A neutralidade é um sinalizador no horizonte. Opinar é fácil. Difícil é manter uma salutar equidistância e deixar ao leitor a compreensão e o veredito. Liberdade de expressão é uma bandeira da sociedade, nós, comunicadores, não trabalhamos sem liberdade de informação.

Normas, conceitos, são apenas orientações na hora de escrever. Devo dominar a técnica para avançar. Um texto tem autor, sim. Seria reducionismo depender da opinião como pressuposto indispensável para a afirmação da autoria. O redator se mostrará ao leitor não é pela opinião, que qualquer um pode expressar no boteco da esquina, mas pela narrativa. Esta só os especiais dominam.

Para ser um grande narrador só há dois caminhos: ler e escrever. Os dois juntos. Não basta apenas ler, muito menos só escrever. Quem lê muito e redige pouco, enreda-se nas próprias ideias e não consegue se expressar com clareza. Quem só escreve, reproduzirá ao longo da vida o mesmo texto: talvez até correto e eficiente, mas burocrático, singelo ou simplório. E para saber narrar só há uma alternativa: devorar romances. Inúmeros autores, diferentes tendências.

O texto literário que mais se aproxima do jornalismo é o de Ernest Hemingway (1899-1961): claro, duro, conciso, com o uso perfeito de diálogos. Ele mesmo dizia, em tom de provocação, que “tudo que aprendeu” foi no Manual de Redação do jornal Star, seu primeiro emprego. Mentira. Lia muito e trabalhava exaustivamente na limpeza do texto, como todo o jornalista. Ele reescreveu várias vezes O Velho e o Mar e confessou que não ficou como queria, apesar de tê-lo como sua melhor obra, não em minha opinião. No diário fictício Verdade ao Amanhecer descobre-se um Hemingway leitor de George Simenon no original em francês. Confira sua narrativa em poucas linhas de O Sol também se levanta (este título eu gostaria de ter feito):

Era o Bar Milano, pequeno e sórdido, onde se podia comer e dançar na sala de trás. Sentamo-nos a uma mesa e pedimos uma garrafa de Fundador. Não havia muita gente e nada se passava ali.

– Que lugar horrível! – disse Bill.

– É muito cedo. (P.193)

Se você ainda não leu Nelson Rodrigues (1913-1980), o faça. Ninguém o lê impunemente. Não tanto pelo conteúdo, em geral apresentado, de forma equivocada ou preconceituosa, como pornografia. Em sua obra tem sexo, sim, numa visão escandalosa ou agressiva, mas falta erotismo. Contudo, no contato com Nelson, alguma coisa permanece pelo resto da vida em seu texto. Ao intercalar a frase curta com a curtíssima, estabelece um ritmo como alguém datilografando numa velha máquina de escrever. A forma como o dramaturgo e cronista carioca descreve e seus personagens falam é tão própria que qualquer ator, por mais experiente e universal que seja, quando o interpreta, fica falando no tom rodriguiano. No teatro, no cinema, nas séries de televisão, os créditos são dispensáveis. As imagens também. Basta ouvir para se saber de quem é o texto. Mais ou menos como acontece com Woody Allen. Fala demais e alucinadamente. Em Nelson, tudo é econômico, na medida certa. Sinta o clima no folhetim O homem proibido:

Joyce, comovida, tomou entre as suas as mãos da outra:

– Que peso você tirou de mim. Eu estava certa, Sônia; era capaz de jurar que você gostava do Dr. Paulo.

– Tinha graça!

Joyce estava com o rosto encostado no de Sônia. Nunca a ternura que as unia fora tão intensa e tão perfeita. Joyce dizia com a doçura da mulher que está descobrindo em si o primeiro amor:

– Seria horrível, Sônia, se nós duas gostássemos do mesmo homem. Não é?

A outra admitiu:

– Seria, sim. (P.45)

Percebe-se: um texto deve intercalar, sempre, o discurso indireto (você contando) com o direto (palavras textuais). Uma matéria não é um relatório. Nem pode ser declaratória demais, com muitas citações, o que torna a leitura cansativa. É preciso trabalhar a informação, suar. Expressões ou frases textuais devem aparecer como alegoria, colorido, humanidade; e uma das coisas mais difíceis é torná-las verdadeiras, verossímeis, editar sem distorcer. O escritor mexicano Juan Rulfo (1918-1986) sobreviveu 30 anos aos dois livros que escreveu: os contos Chão em Chamas (1953) e o romance Pedro Páramo (1955). Durante todo este período, não publicou nada mais, somente corrigiu, obstinadamente, os dois existentes. De tal forma que há diferenças no texto nas inúmeras edições. As mudanças advinham da preocupação e rigor em reproduzir com absoluta fidelidade como as pessoas simples dos desertos do México se expressam, sem abrir mão de alguns conceitos de estilo e gramática, mesmo rudimentares, o que tornava sua tarefa mais difícil. Seu esforço é reverenciado por escritores no mundo todo, como os inigualáveis Juan Carlos Onetti (1909-1994), uruguaio, e Julio Cortázar (1914-1984), argentino nascido por acaso na Bélgica. Rulfo é de arrepiar. No conto Você não escuta os cães latirem:

Suava ao falar. Mas o vento da noite secava o suor. E sobre o suor seco, tonava a suar.

– Eu vou me estropiar inteiro, mas chego a Tonaya com você, para que alguém alivie estas feridas que fizeram em seu corpo. E tenho a mais pura certeza de que assim que você estiver se sentindo bem, vai voltar para o mau caminho. Mas isso já não me importa. Com tal de que você vá para longe, onde eu nunca mais tenha notícias. Só isso… Porque para mim você não é mais meu filho. Amaldiçoei o sangue que você tem de mim. A minha parte, amaldiçoei: “Que apodreça nos rins dele o sangue que eu lhe dei!” Disse isso assim que fiquei sabendo que você andava traficando pelos caminhos, vivendo do roubo e matando gente… E gente boa. Senão, aí estava o meu compadre Tranquilino. Foi ele que batizou você. Foi ele que deu o seu nome. E também ele teve a má sorte de encontrar você. Naquele momento eu disse: “Este não pode ser meu filho.” P.348 e 349)

Completo este ensaio sobre a palavra, que são mais reflexões do que produção científica, trazendo a você o escritor italiano Ítalo Calvino (1923-1985), nascido por acidente em Cuba. Um texto correto, oportuno, bem estruturado, que perseguiremos ao longo da vida, deve emoldurar-se com o singelo e elegante de Calvino. Das Cidades Invisíveis:

Se ao aterrissar em Trude eu não tivesse lido o nome da cidade escrito num grande letreiro, pensaria ter chegado ao mesmo aeroporto de onde havia partido. Os subúrbios que me fizeram atravessar não eram diferentes dos da cidade anterior, com as mesmas casas amarelinhas e verdinhas. Seguindo as flechas, andava-se em volta dos mesmos canteiros e das mesmas praças. (…) Era a primeira vez que vinha a Trude, mas já conhecia o hotel em que por acaso me hospedei (…).

– Por que vir a Trude – perguntava-me. E sentia vontade de partir.

– Pode partir – disseram-me –, mas você chegará a uma outra Tude, igual ponto por ponto; o mundo é recoberto por uma única Trude que não tem começo, nem fim, só muda o nome do aeroporto. (P.118)

(Tibério Vargas Ramos, ensaio publicado no livro “Relações Públicas: Construindo relacionamentos estratégicos”, organizado por Souvenir Maria Graczyk Dornelles, Coleção RP, volume 2, Edipucrs, 2010).

Autores citados:

Balzac, Honoré de. Ilusões Perdidas. Trad. Ernesto Pelanda e Mário Quintana. São Paulo: Círculo do Livro, 1982.

Bíblia Sagrada. São Paulo: Paulinas Editora, 2005. 1472 p.

Calvino, C Italo. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

Grass, Günter. O tambor. Trad. Lúcio Alves e Rachel Valença. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2006.

Haught, John F. Deus após Darwin – Uma Teologia Evolucionista . Trad. Vera Whately. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2002.

Hemingway, Ernest. O Sol também se levanta. Trad. Berenice Xavier. São Paulo: Editora Abril, 1981. Verdade ao Amanhecer. Trad. Mario Pontes. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

Onetti, Juan Carlos. A vida breve. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Editora Planeta, 2004.

Rodrigues, Nelson. O Homem Proibido. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1981.

Rulfo, Juan. Pedro Páramo & Chão em Chamas. Trad. Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro e São Paulo: Record, 2004.

Wilde, Oscar. O Retrato de Dorian Gray. Trad. Jeanette Marillier. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1952.

Publicado em 8/8/2015
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