Tibério Vargas Ramos
Ensaios
Vida e aventuras do comandante Ramos
DEPOIMENTO/ Gaudêncio Machado Ramos
Ramos pilotou até os 80 anos, a preferência pelo velho RCS

Ramos pilotou até os 80 anos, a preferência pelo velho RCS

DEPOIMENTO/ 1997

Tibério Vargas Ramos

Em 1942, quando Alegrete tinha 30 mil habitantes, dos quais apenas 12 mil na cidade, com poucas ruas calçadas e um número pequeno de automóveis, Gaudêncio Ramos já andava de avião. O piloto-símbolo da cidade, detentor da Medalha Santos Dumont, hoje nome do Aeroporto Federal de Alegrete Gaudêncio Machado Ramos, cruzou a América de teco-teco. Funcionário público e jornalista, morreu aos 92 absolutamente lúcido, mas cego. A vida lhe tirou o brilho dos olhos, mas a graça de Deus fez com que ele continuasse vendo com a memória e o coração. Aos 90 anos, com os olhos em um ponto infinito, gestos longos com a mão direita ao alto, ele me deu este depoimento em 1997, em longa conversa de pai para filho, durante dias de férias em dezembro, na nossa casa na Mariz e Barros, em Alegrete.

“Depois de oito dias de viagem, sozinho num Cessna 170 (monomotor de quatro lugares), vindo de Minas Gerais, reconheci as pastagens de Alegrete, a mancha de areia do São João, o Passo Novo, a cidade pequena, as torres da igreja, ponto mais alto de uma época em que não havia nenhum edifício. Notei com alegria a aproximação do Paper PA 18, de dois lugares, que três anos antes eu tinha ido buscar no Rio de Janeiro. Era o Antônio Torcelli que tinha ido me dar as boas-vindas no ar. Estava chegando mais uma vez em Alegrete.

Filho de Cássio Gonçalves Ramos e Ignácia Machado Ramos, nasci em Uruguaiana, em 12 de julho de 1907, o segundo de uma família de nove irmãos. Na minha infância, moramos numa chácara, para os lados do cemitério, e também na fazenda dos meus avós, no Itapitocai. Nesta época, andei toreando um trem, no meio dos trilhos, e me safei de fininho. O “seu Beto”, que era agente da estação do Itapitocai, denunciou a minha façanha ao meu pai e ele me aplicou uns quatro bolos de lascar.

Assim como o trem, driblei o tifo que me arrancou os cabelos, a peste bubônica e a febre espanhola. Diziam que “a Espanha não quis entrar na Guerra (a de 1914), mas mandou uma espanhola que matava como a guerra”. Da nossa chácara perto do cemitério, eu via passar os enterros. Os caixões dos pobres eram puxados por uma parelha de cavalos. Os dos remediados, por duas. O ataúde dos ricos, em trajeto imponente, era levado por três parelhas. No final da febre espanhola, estavam todos iguais. Eram tantos enterros que os cavalos andavam exaustos. Todos os carros tinham de ser puxados por quatro animais.

“O Flores da Cunha

me chamou;

queria comprar mulas”

Aos poucos, como depois de todas as tragédias, a vida foi voltando ao normal em Uruguaiana. No final das tardes, o intendente da cidade, o doutor Flores da Cunha, que ganhou o título de general nas revoluções, se reunia com chefes políticos para uma prosa na calçada em frente ao Clube do Comércio, na praça Rio Branco, perto da Prefeitura. Certa feita, eu ainda era gurizote e cruzava a cavalo na frente do Clube, quando ele me chamou. Fui apear, pois ensinava a boa educação que não se fala com uma pessoa mais velha montado, mas ele interpôs:

– Não apeia, não apeia. Só diz para o teu pai que eu vou querer as mulas que ele me ofereceu – me surpreendi ao constatar que o doutor Flores me conhecia. Líder chimango, ele comandou, em 1923, a defesa de Uruguaiana do ataque dos maragatos de Honório Lemes e também participou da defesa de Alegrete, na célebre batalha da ponte do Ibirapuitã, ao lado de Oswaldo Aranha.

Eu me lembro do alegretense ilustre Oswaldo Aranha, mas em Uruguaiana. Ele discursava na frente da Estação da Viação Férrea. Parece hoje. Estava montado num cavalo zaino, segurando as rédeas na mão direita e fazendo gestos com um chapéu preto na mão esquerda.

Em Uruguaiana, passeios a cavalo (Arquivo Família)

No meu tempo de piá, ia estudar a cavalo, pois a escola ficava longe. Aprendi as lidas do campo e cheguei a ser tropeiro. Em 23 de setembro de 1927, entrei na Exatoria Estadual, chamada à época de Mesa de Rendas, como marinheiro na fiscalização da Barra do Quaraí, onde a repartição possuía um alojamento para seus funcionários. O ato de nomeação foi assinado pelo então Presidente do Estado, Getúlio Vargas, e tenho guardado até hoje o documento original. Junto com o trabalho, continuei estudando. Em abril de 1929, prestei concurso para escriturário da Fazenda, no colégio Paula Soares, em Porto Alegre. Fui aprovado e transferido para Alegrete, onde cheguei pela primeira vez naquele ano. Mas permaneci pouco tempo na cidade. Por sorteio, fui convocado para a Revolução de 30 e encorporado ao 5º Regimento de Cavalaria, na época sediado em Uruguaiana, hoje está em Quaraí.

Meu pai era chimango e não usava bombacha, mas culotes, como um lorde inglês (Arquivo Família)

No dia do embarque para a Revolução, me dirigi até a Estação de Uruguaiana num carro de aluguel, puxado a cavalo. Ao chegar, notei que os soldados uniformizados usavam lenços maragatos no pescoço. O cocheiro que  me conduziu viu que eu não tinha lenço e ofereceu o seu, se eu quisesse. Respondi que “com  muito prazer”. Era branco. Como o lenço do meu pai. Assim, subi com a Revolução até o Rio de Janeiro como um soldado chimango. Na estação de Curitiba, a mais bonita de todas, caminhava pela gare quando cruzei por Getúlio Vargas, que estava acompanhado de um padre. Fiz continência e o futuro presidente me respondeu.

Vitoriosa e Revolução, dei baixa do Exército em abril de 1931, como cabo, e voltei para a Exatoria. Fui lotado em São Luiz Gonzaga e seis meses depois voltava para Uruguaiana. Lá fiquei até 1938. Em 31 de janeiro daquele ano, vim definitivamente para Alegrete, cidade que me acolheu, onde conheci a Conceição, com quem casei em 1947. Aqui criei meus filhos Yara, Tibério, Maria Luiza e Eduardo. Generosamente, por sugestão do vereador Gaspar Paines, seu povo acabou me concedendo o título de Cidadão Alegretense, em 1989. E por graça de Deus, eu e a Conceição comemoramos Bodas de Ouro, em 20 de dezembro de 1997, na companhia  de amigos, de familiares, dos filhos, genro, nora, netos e a bisneta Amanda ajudou a reproduzir a cerimônia de casamento, 50 anos depois, conduzindo nossas alianças até o altar da capela do colégio Divino Coração, em missa de ação de graças oficiada pelo padre Vanderlei e o apoio inestimável da irmã Lúcia. Faltou a presença do Dadinho, nosso querido filho caçula, que a brutalidade da civilização humana nos tirou aos 17 anos. Foi o maior tranco que a vida pregou em mim e na Conceição. A gente continua, mas que falta faz!

“Comecei a pilotar

na época da

Grande Guerra”

Ramos começou a pilotar em 1942

Ramos começou a pilotar em 1942

Foi em plena Segunda Guerra, em 1942, mais precisamente em 18 de outubro, que comecei meu curso para piloto civil. A primeira aula, de uma hora e 35 minutos, registrada em minha pasta no Aeroclube, foi dada pelo amigo, aviador e jornalista Alceu Prunes Dória, que faleceu anos mais tarde num desastre com um T 19, rebocando um planador, na beira do mar. Participei da primeira turma formada pelo Aeroclube de Alegrete, tendo como instrutor responsável Gilmar Ninhas Mariath. Prestamos exame em 43 e recebemos a carteira no início de 44.

A minha iniciação na aviação, em 42, coincidiu com o começo da minha carreira como jornalista. O mesmo Alceu Prunes Dória foi me receber na Estação – eu vinha de uma viagem a Uruguaiana onde fora visitar meus pais – e me convidou para que eu o substituísse como redator da Gazeta de Alegrete, pois ele, Prunes, estava deixando a cidade para ser piloto da Varig. Foi assim que passei a ser redator da Gazeta de Alegrete, ofício que desempenhei por mais de dois anos e onde tive a oportunidade de publicar os primeiros poemas de um jovem muito alto, magro, tímido, espirituoso e com grande talento, chamado Hélio Ricciardi dos Santos. Em 45, no fim da Grande Guerra, deixei a Gazeta, mas não abandonei o jornalismo. Continuei colaborador do jornal e fui convidado para ser o correspondente do tradicional e respeitável Correio do Povo, na época de Breno Caldas. Durante 25 anos, enviei as principais notícias da nossa terra ao róseo da Capital.

Foi também no ano de 45, em 7 de maio, que tive a minha iniciação na Maçonaria, na Loja Luz e Caridade, participando em 51 do reerguimento da Loja Luz e Verdade. A benevolência do amigo Carlos Grande diz que fui um dos colaboradores sempre presentes no movimento Maçônico de Alegrete, nos últimos 50 anos, onde tive a honra de receber inúmeras medalhas, cheguei ao grau 33 e fui venerável de 1963 a 65.

Ao lado do meu exercício profissional na Exatoria, onde trabalhei como tesoureiro durante muitos anos e me aposentei como exator, continuei sempre redigindo artigos, notas e notícias para os jornais, mas nunca deixei de lado aquela que, não nego, foi a minha grande paixão e a maior rival da Conceição, exigindo a minha presença constante em todos os sábados e domingos: a aviação. Em 1954, prestei concurso para instrutor no Rio e até 1984, aos 77 anos de idade, fui o responsável pela formação de pilotos em Alegrete. Continuei voando até os 80 anos. Preparei 57 aviadores, entre eles algumas mulheres, como a Flávia, a Dirce e a Ivone, que foram pioneiras, decididas e até certo ponto revolucionárias, conseguindo o brevê 40 anos atrás.

A mesma pose 35 anos depois, em 1977, quando Ramos recebeu a medalha Santos Dumond

A mesma pose 35 anos depois, em 1977, quando Ramos recebeu a medalha Santos Dumont

Em 1º de julho de 1977, recebi a Medalha Santos Dumont, uma das mais altas condecorações outorgadas pela aviação brasileira. Cinco anos mais tarde, fui homenageado num encontro de pilotos em Bento Gonçalves. Na ocasião, o Fantástico, da Rede Globo, me entrevistou por ser o piloto mais antigo em atividade no país. Cheguei a dar um vôo panorâmico com a repórter e o cinegrafista.

Décadas e décadas atrás. Foi em 1951 minha primeira grande viagem de teco-teco, expressão usada popularmente para designar os pequenos aviões e eu escolhi para nome de um cachorro fiel e vira-lata que me acompanhou por 12 anos, entrando atrás de mim até no Casino. Naquele ano de 51, fui ao Rio buscar o inesquecível GKC, um Paper PA 18, de tela, dois lugares e a tecnologia avançada do flape, que permitia decolar e aterrissar em qualquer campo, por menor que fosse. Em uma única cerimônia, Getúlio Vargas entregou 80 aviões para aeroclubes do País. Todas as aeronaves foram colocadas lado a lado e o presidente passou num jipe aberto. Quando ele cruzou na minha frente, eu deveria dizer “Alegrete” e um soldado ao meu lado acrescentaria: “Rio Ibirapuitã”. Assim foi feito.

No dia 15 de agosto, decolei do Rio. Fiz escala em Resende, em São José dos Campos, em plena serra paulista, aterrissei em São Paulo, Paranaguá, Florianópolis, Torres, Osório, Porto Alegre e Santa Maria. Dia 18 chegava em Alegrete.

Ramos com Eva Perón, três meses antes dela falecer em 1952 (Foto Lacy Guterres)

Ramos com Eva Perón, três meses antes dela falecer em 1952 (Foto Lacy Guterres)

No ano seguinte, participei da primeira grande revoada da aviação civil da América do Sul, à Argentina. Saímos de Alegrete no dia 12 de abril, em cinco aviões, eu, o Torcelli, o Nei Ferreira, o Bolivar, o Carivalli e o Laci. Pousaram em Buenos Aires 250 pequenas aeronaves dos mais diferentes países latino-americanos. O general Juan Perón assinou uma autorização para que pudéssemos voar por todo país, para conhecermos. E mais: mandou o Governo pagar as contas dos hotéis e às vezes até de restaurantes. Eram outros tempos. Uma delegação de aviadores foi recebida na Casa Rosada por Eva Perón, fui um dos escolhidos, e tive a oportunidade de entregar a ela uma flâmula do ACA (Aeroclube de Alegrete). Estive com Evita três meses antes dela falecer em 26 de julho de 1952. Seis dias depois da partida de Buenos Aires, estávamos de volta a Alegrete, sem nenhum incidente de percurso. Apenas muitas histórias e façanhas.

No ano de 1956, em março, estive presente em outra revoada, a Punta del Leste. Pilotos amadores estrangeiros, em dezenas de aviões, se dirigiram ao Uruguai. Lembro-me que fiquei impressionado com as mansões de Punta del Este pintadas de branco.

Naquela época, com estradas de rodagem em péssimas condições na fronteira, quando existentes, o Aeroclube era muito requisitado por fazendeiros e políticos, para poderem se deslocar a estâncias e comícios. Andei com o Leocádio Antunes, o Fernando Ferrari, mas quem eu mais conduzi foi o Ruy Ramos e a dona Nehyta, que acabaram morrendo num desastre aéreo em Pelotas, em 20 de setembro de 1962, junto com Emílio Zuñeda.

Uma vez, eu fui levar o Ruy na Granja São Vicente, em São Borja, e ele me apresentou ao Jango. Naquele dia, pernoitamos na estância do então vice-presidente. Tinha um galpão e um alojamento com uns 20 quartos, onde eram acomodados os visitantes menos ilustres. Havia um clima de euforia em razão de vitória nas eleições. Em meio a um chimarrão e outro, alguém comentou comigo:

– Em Alegrete, vencemos.

– Eu perdi – respondi.

Fez-se um silêncio. Lembrei-me da Conceição. Ela, que era PTB, havia ganho, como eles. Eu, não. Era UDN. Contudo, apesar de não ser companheiro, era, modestia à parte, o piloto preferido do Ruy. Ele dizia que tinha confiança em mim e eu muito me orgulhava disso. A dona Nehyta chegava  a brincar comigo, referindo-se à política:

– Raminhos, Raminhos, passa para o nosso lado!

“A hélice disparou

na Mantiqueira. Pensei

que ia saltar fora”

Em 1953, o Cessna se acidentou e conseguimos com o Príamo Souza, coronel da Aeronáutica, que ele fosse recuperado na Força Aérea, em Lagoa Santa, Minas Gerais. Em maio de 1954, fui buscar o ACM, que já estava consertado. Decolei no dia 11 e fiz a primeira escala em Belo Horizonte. Ia sozinho no avião de quatro lugares. Em plena Serra da Mantiqueira, a hélice disparou em altíssima rotação. Imaginei que fosse saltar fora. Podia ser um defeito no conserto ou injeção a mais de combustível. Ao lado de mim, as montanhas. Lá embaixo, os vales. Bom lugar para se espatifar. Resolvi apostar na melhor alternativa. Com todo o cuidado, procurei regular a alimentação da gasolina. Aos poucos, a hélice voltou ao normal, mas a aventura estava apenas começando.

Pela segunda vez, aterrissei em São José dos Campos – a primeira tinha sido com o GKC, na vinda do Rio. Decolei para a cidade de São Paulo. No trajeto, levei outro susto imenso. Um Douglas passou quase pelo meu nariz. Eu tinha cruzado a rota da ponte-aérea Rio-São Paulo. Nenhum avião nosso naquela época tinha rádio e voávamos em regiões estranhas com o mapa, a régua, a bússola, o visual e a coragem. Corrigi o plano de navegação e acabei aterrissando na Base Aérea de São Paulo, sem problemas.

Segui viagem atravessando o Paraná. Só pousei em São Francisco do Sul, já em Santa Catarina, bem na fronteira com o Paraná. Planejei como próxima escala o porto de Itajaí, mas não consegui chegar até lá. Peguei mau tempo e tive de retornar a São Francisco. Durante quatro dias choveu sem parar e fiquei ilhado na pequena cidade catarinense. Terminou o dinheiro. Pedi para a Conceição fazer uma remessa, mas não esperei a chegada, naquela época muito demorada. Abriu o sol e eu consegui gasolina emprestada, um troco para almoçar no meio do caminho, e decolei. Foi assim que cheguei de volta a Alegrete, em 19 de maio de 54, sem nenhum dinheiro no bolso, mas muita festa aguardava o retorno do Cessna, nosso melhor avião. Até o Torcelli foi me dar as boas-vindas no ar. Era sempre bom rever as pastagens do Alegrete, a mancha de areia, as torres da igreja, e dar um pouso de pista ou três pontos, lambendo de leve o chão alegretense”.

 

(Tibério Vargas Ramos, texto publicado na Gazeta de Alegrete, em 1997)

Publicado em 8/8/2015
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