Tibério Vargas Ramos
Inéditos
Os refugiados
Conto completo escrito em julho de 2015, especialmente para o site, publicado na ocasião, e revisado em outubro de 2017

Tibério Vargas Ramos

 

O acossado exausto ouve o ruído de motor às suas costas. Para o passo de infantaria no acostamento da BR-290, a rota para o Uruguai e Argentina, e olha para trás. O ônibus desponta na frente do sol nascente. Ele firma o olhar e consegue ler no parabrisa: semidireto. Decodifica a informação. Quer dizer pinga-pinga. Ergue o braço. O motorista atende ao sinal: pisca à direita e sai para o acostamento. Rangem os freios. Passa do passageiro, estaciona adiante. O rapaz corre batendo os braços como se tentasse nadar. Ofegante, sobe as escadas e a porta se fecha. Respira fundo. Está exausto, percorreu uma maratona durante a noite, atravessando campos, lavouras, matagais de acácia, maricá e angico, os braços arranhados por baixo das mangas longas. Procurou pegar a estrada bem longe.

− Para onde vais? – pergunta o condutor.

− Bem mais adiante – quanto mais longe, melhor, pensa.

− No fundo do carro tem lugar, te acomoda, podes pagar quando desceres – examina o passageiro: a aba do boné cinza encobrindo os olhos, calça de brim e moletom cinza, tênis embarrado, bolsa de couro surrada a tiracolo, esbaforido, espero que tenha dinheiro para a passagem. Engata a marcha, dá sinal para a esquerda e volta ao asfalto.

Atravessa o corredor se segurando no encosto das poltronas. Há alguns bancos vazios; ele escolhe o lugar ao lado da índia. Não quer ficar à janela. Senta apertado contra o encosto do braço, para usar o pequeno espaço no acento. A pele da passageira se assemelha à carapaça de tartaruga, grossa e áspera. Como os répteis, mais terrestres do que aquáticos, não gosta de água, exala do vestido de chita a catinga da couraça escamosa. As carnes da gorda velha esparramadas no banco. As duas mãos inchadas seguram o cesto indígena de palha, coberto por um guardanapo encardido. Pelo cheiro, traz galinha assada com farofa. Fiambre para longas viagens ao fim do mundo.

O chofer saiu da rodoviária de Porto Alegre de acordo com o figurino, como manda o regulamento: camisa branca impecável, a logomarca da empresa no bolso, calça azul marinho, bem frisada, quepe na testa, como um oficial do Exército. A cada pedido dos passageiros ou braço erguido na BR, pé no freio e na embreagem. Pegada forte no volante, a direção coberta por uma capa vermelha gira entre os braços. Pessoas embarcam ou descem no meio do caminho. O coletivo entra em todas as cidades. Ruas estreitas de paralelepípedo, casas na beira da calçada. O tour até as rodoviárias que ficam dentro das cidades, afastadas da faixa.

A mulher come o frango aos poucos. Os dedos engordurados e salpicados de farofa pegam os pedaços pelos ossos. A boca redonda, murcha, sem dentes, faz um bico para amassar o alimento como as tartarugas. Vira-se para a janela, não por timidez ou vergonha, mas para não ter de oferecer ao desagradável ao seu lado. Morto de fome, ele resiste ao impulso de pedir um pedaço, mas não aguenta a vontade de urinar. Arrisca-se a desembarcar na próxima parada. O banheiro recende creolina. No canto do balcão, taça de café preto e sanduíche, oferta da casa, o motorista fica no controle. Será que vai aproveitar para fugir? Ele volta do WC. Olha para os lados, sestroso. Compra dois cigarros avulsos com algumas moedas. Vai dar merda. Não tem dinheiro nem para um maço baratinho. Vai me assaltar. O passageiro acende o mata-rato ao lado do ônibus para esperá-lo.

Cruzam a cidade de Alegrete para chegar à nova rodoviária, construída em parte da Praça Oswaldo Aranha, moderna, toda envidraçada, os boxes cobertos, projetada pelo arquiteto de Uruguaiana, Moacir Ramos Martins, meu primo. Fica na frente da Estação Ferroviária, já em decadência naqueles anos 1970, quando o flamante prédio foi inaugurado pelo prefeito Adão Houayeck. O autor da planta é o único nome que falta na placa de bronze existente lá até hoje, com a lista da administração municipal e todos os que trabalharam na obra, inclusive os serventes, em gesto humano e social. A maioria desembarcou, o carro segue viagem quase vazio, mas o indesejável não muda de lugar, apertado entre o encosto do braço e as carnes flácidas da guarani, transida de medo, sem coragem de sugerir ao outro que trocasse de assento, tantos vagos.

No entroncamento da Harmonia, a última baldeação. Uniforme em desalinho, depois de atravessar o Rio Grande, o chofer levanta a aba do quepe, fecha a porta e engata a primeira. Em vez de continuar na BR asfaltada para a Argentina, deixa para o lado a seta de Uruguaiana e entra na estrada de chão para Quaraí, a caminho do Uruguai. Tanto faz o destino, desde que se afaste. A estrada de chão em curvas contorna as coxilhas de São Rafael. A poeira entra pelas janelas abertas, cheiro enjoativo de terra, cola nas caras suadas, crostas acentuam a casca de tartaruga na contra luz da janela. A ponte de madeira do arroio Garupá, o filete de água lá embaixo.

Começa a cair o sol na campanha. O pasto fica verde escuro, o gado caminha junto para as mangueiras. No horizonte, a bola amarela pinta de vermelho uma faixa no céu. O viajante avista a placa da Texaco. O pequeno posto de gasolina no entroncamento das quatro bocas; estradas municipais que levam às estâncias da região. Lugar perfeito. Levanta sem se despedir da parceira de viagem, ela se benze. Deus do céu! Grita ao motorista, “vou descer!”, se apressa cambaleante no corredor. Ao chegar na frente, abre a sacola, remexe no fundo. Estou frito, supõe; uma mão no volante, outra na palanca, quepe na nuca, camisa remangada, suada e enxovalhada, as calças enroladas até os joelhos, foram-se os frisos. Entrega algumas notas de 50.000 cruzeiros, a esfinge de Osvaldo Cruz, carimbadas pelo Tesouro por causa da inflação, quase sem nenhum valor. Diz:

− É tudo o que tenho, espero que dê para a passagem – o outro nem se preocupa em contar, só de não ser assaltado já está no lucro.

O coletivo deixa para trás nuvem de poeira. Bolsa de couro no ombro, ele caminha lentamente na direção do alvo. A pista de terra, uma única bomba de combustível, duas mangueiras, gasolina e diesel, o prédio de alvenaria sem pintura, só no cimento, parece abandonado, a revenda de óleos minúscula, a porta do mictório e a lanchonete. Num galpão, a borracharia. Lá no fundo uma velha caminhonete. O homem de bombacha campeira argentina, estreita, alpargatas, cuia de mate na mão, anel de alpaca, composto de zinco, níquel e cobre, ajeita a faca de prata na cintura. Odeia surpresas. Um rosto de mulher espia na vidraça dos lanches. Galinhas fornecedoras de ovos ciscam pelo chão. Quando veículos se aproximam, elas saem da frente, para não serem atropeladas, mas não se afastam. Os dois sujeitos se avaliam.

− Sei que o senhor vai dizer que não tem emprego para mim. Não ando atrás de salário e posso ajudar em todo o serviço. Desmontar pneu de bicicleta ou de trator é a mesma coisa, só exige mais força – tenta um sorriso.

− Por supuesto, não és mole, mas não estou neste fin del mundo para levar vida fácil – a expressão “fin del mundo” na frase em portunhol soa como música nos ouvidos do intruso.

− Posso ajudar, sem receber, depois tomo o meu rumo.

− Tienes alguna arma? Vai, esvazia la sacola.

Caem, no chão, duas cuecas, meias soquetes e camiseta. Nenhum metal, carteira ou dinheiro. O itinerante desembarcou na frente do posto, com testemunhas. Se quisesse assaltar, teria descido mais longe para aparecer de surpresa. É uma tese, todavia, sem garantia. A esposa aparece na porta, mãos enroladas no avental. Como se livrar dele? Não pode matar e enterrá-lo. O motorista e os passageiros são testemunhas de que ele desceu ali, alguém pode conhecê-lo. Viu a cara redonda de índia velha na janela, olhos puxados.

− Mira quem apareceu, quer posada. Pero, está disposto a ajudar na borracharia sem receber plata – boa coisa não é, comenta com o olhar.

− As tuas costas não aguentam mais pneus de caminhão e trator. Se vou te ajudar, arrebento as unhas. Tu podes fazer uma experiência…

− Bueno, de cualquier manera ya vá anochecer. Fica por aí, todavia, aunque mañana nosotros resolvimos.

− Obrigado – indeciso, sem saber para onde ir, balança o corpo.

A esposa examina mais uma vez as roupas, não gosta da aparência, semblante de acuado, pele macilenta de quem não pega sol havia meses, olhos fundos, magro, deve ter vinte e poucos anos. O estranho caminha lentamente até o galpão da borracharia, a bolsa de couro nas costas. Só falta ele querer me roubar a Ford. Não tem chave como os carros modernos de hoje, basta unir os dois fios da ignição que o motor pega. Placas de Artigas, Uruguai, é usada para buscar tonéis de combustível em Quaraí. O castelhano entra no pequeno espaço dos lubrificantes. Sobre a mesa, o telefone mudo, tem que conectar o gato no poste para dar linha a cada ligação. Pega o revólver na gaveta. Enquadra o corpo na porta. Se ele arrancar, abro fogo.

Ele começa a desvirar a água armazenada nos pneus ao relento e depois os empilha embaixo do galpão para não voltarem a encher de água na próxima chuva. Dá uma varrida com a vassoura de ramos secos. Quer mostrar serviço, relaxa o proprietário. A esposa busca água no poço. Gostaria de ajudá-la, mas poderia ser mal interpretado. Ele joga fora a água imunda da velha banheira usada para testar as câmeras. Água parada só serve para criar mosquito. Odeia tanto a picada quanto o ruído dos pernilongos ao redor da cabeça durante a noite.

Despeja a água fria no barril de carvalho cortado ao meio, no banheiro privativo nos fundos, a louça amarelada e o piso de cimento rachado. O mictório do posto, só com vaso e pia, perto da bomba, é imundo, pior que o WC da rodoviária de São Francisco de Assis. Destinado apenas aos clientes em apuros. Melhor do que correr para o mato e se limpar com guanxuma. Ali tem folhas de jornal. Ela despeja a chaleira fervendo no banho para amorná-lo. Começa a se despir. As peças vão ficando no encosto da cadeira, umas sobre as outras. Desamarra o coque.

Experimenta a temperatura com a ponta do pé. Nua, cabelos soltos, ela entra na tina. Xampu e sabonete nem pensar. Terminaram há semanas. Assim é difícil ser mulher. Lava os cabelos com sabão de coco e ensaboa o corpo com barra de glicerina. Sabão de pedra Gaúcho só para lavar a roupa e o banho do marido. Ela exagera ao esfregar as axilas, os seios, os pelos negros, as bordas de mel, as nádegas, as coxas. Estende a mão para pegar a toalha deixada no assento da cadeira. Sai do banho. A água pinga no piso. Enxuga-se. Passa a palma da mão no pequeno espelho embaçado para ver o rosto. Enrola os cabelos na toalha úmida. Corre nua até o quarto, na ponta dos pés, para se vestir. Vestidinho leve abotoado na frente, a pele refrescada, os cabelos úmidos e soltos, pergunta ao esposo se ele não vai tomar banho. Fez não com a cabeça. Todo o dia é demais. O cheiro próprio faz parte de seu corpo. Banha-se de vez em quando.

− Ele vai ter que tomar um banho – aponta a borracharia com o queixo.

O marido deu de ombros.

− Vem cá − grita.

− Sim senhora – aproxima-se.

− Podes tomar um banho. Tem uma tina no banheiro dos fundos, faz a volta no posto. Pega água no poço. Vou preparar um carreteiro de charque e te darei um prato pelo pagamento da limpeza que fizeste.

− Obrigado dona – tem um buraco na barriga, dói.

− Não é fácil a poeira aqui nas quatro bocas, vivo limpando o balcão, as mesas e cadeiras do bar – uma luta inglória.

− Imagino que sim.

− Chega de prosa, entonces, vá tirar la catinga del cuerpo para no apestar el ambiente la hora de la janta – corta o marido.

− Com licença – se afasta.

− Educado – comenta a mulher.

− Hum. Demás pra mi gusto. Por supuesto, tiene algo de errado com él para aparecer neste fin del mundo.

− Como nosotros.

O visitante começa a contornar o prédio. Os latidos do cão deixam-no em alerta. Percebe que está amarrado. É solto à noite para fazer a ronda. Não te bobeia, precisa estabelecer uma parceria. Aproxima-se do animal, olhos fixos, sem exalar o cheiro do medo, e ele silencia. Passa a mão na cabeça, alisa o pelo, já fez amizade, e segue o caminho. Entra na porta entreaberta. Vê a água branca, cheiro de coco e glicerina. O mesmo perfume que exala da pele e dos cabelos molhados da dona. Todas as roupas dela ficaram no encosto da cadeira. O dono do posto serve-se de pinga no balcão. A esposa volta a prender os cabelos e os cobre com o lenço, para não ficarem com cheiro de fritura. Pica cebola e a carne de sol gordinha. Pela janela, o casal avista o poço, o balde dependurado na corda. Ele não foi buscar água. Está tomando banho na minha água, sentindo o meu cheiro.

− Cara mais relaxado, não trocou a água da tina – comenta o esposo.

− Como sabes? – ela se fez de desatenta.

− Não foi no poço pegar água.

Escurecia lá fora.

− Tenho mais o que fazer do que ficar cuidando o poço – joga a carne na cebola que frita na banha, na panela de ferro. O cheiro esquenta o ambiente. O carinha deve estar se refestelando na água de coco e glicerina onde me lavei. Deu-se conta: saiu pelada, esqueceu toda a roupa no banheiro, a calcinha bem em cima. Jura para si mesma que não teve intenção deliberada. Seria o subconsciente querendo que ele visse? O jovem parece ter desmaiado na tina, o nariz encoberto, respirando através do tecido de bolinhas azuis.

Ficção livremente baseada em reportagem que fiz na Folha da Tarde em 1972

No pampa deserto, o castelhano liga o rádio para ouvir o Correspondente Renner das oito da noite, em ondas curtas. Procura em 25 e 49 metros a melhor propagação do sinal da Guaíba. O som vem e vai. O Guarani, de Villa-Lobos, indica o fim da Voz do Brasil. Acordes do Negrinho do Pastoreio e o locutor dá o prefixo da emissora de Porto Alegre. Característica sonora anuncia o noticiário na voz de Milton Young. Ela põe a panela de ferro fumegante numa das poucas mesas da lanchonete. Os dois homens se aproximam. O forasteiro não come havia mais de 24 horas. A cerveja despejada em três copos com espuma. A mulher curva o corpo, botão aberto, os seios soltos, serve os pratos.

O boletim entrecortado − entra e sai em ondas. “E atenção ouvintes, a última notícia:” A síntese radiofônica informa a fuga na penitenciária. Durante partida de futebol entre detentos, no pátio da cadeia, no fim da tarde passada, o muro foi encoberto pela torcida. Atrás dos espectadores, duas pedras foram retiradas do paredão. O chefe da quadrilha de assaltantes de banco enfia a cabeça. Os ombros se apertam no buraco estreito. Bate os pés e desaparece. “Mais um”, grita a torcida. Outro cruza. O grito das arquibancadas cada vez mais empolgado: “Mais um!” Todo o bando escapa. Fica o buraco aberto. Um dos torcedores se esgueira. Outro tenta fazer o mesmo, mas é obeso e se tranca na passagem. Os guardas desconfiam do tumulto entre os espectadores, o jogo interrompido, os atletas abandonaram o campo e se empurram com os torcedores. Os agentes abrem caminho com cassetetes e encontram o gordo entalado.

A sirene anuncia a fuga. Vigias nas guaritas avistam o Opala banco em disparada. O carro, com chave na ignição, foi deixado próximo para ser utilizado pelos evadidos. O rádio da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) alerta os órgãos de segurança. Viaturas da Brigada Militar, Polícia Civil e Rodoviária Federal, sirenes abertas, se deslocam. Começa a perseguição. Cinematográfica. Pé no fundo, cortes, derrapagens. Tiros. Os fugitivos deitados nos bancos, só a cabeça do chofer, lataria furada, vidros traseiros partidos, balas zunem. Saídas fechadas. Na BR, o Chevrolet é interceptado. A porta dianteira da esquerda se abre. Armas engatilhadas. Qualquer gesto, fuzilaria. O chofer desembarca de mãos para cima. Se alguém disparar um tiro, os corpos dos cinco viram peneira. Kombi da Folha da Tarde e Fusca da Zero Hora chegam juntos. Nada de execução testemunhada pela imprensa, fotos nos jornais.

− Ninguém atira! – grita o chefe da operação aos policiais. – Desembarquem do carro de mãos para cima – ordena aos foragidos. Receosos, pode ser um blefe, os delinquentes saem titubeantes. – Deitem no chão! – volta a berrar o delegado.

Em gestos lentos, eles se ajoelham. A foto perfeita. O ruído do disparador das máquinas fotográficas reverbera nos ouvidos dos condenados como garantia de vida. A presença dos repórteres é a salvação. Deitam no asfalto. Com o pé, os policiais identificam os capturados. Falta um. Ele não fazia parte do bando e não deixaram entrar no automóvel. O casal se olha. A notícia final em 20 linhas, longa e detalhada, acrescenta que o único fugitivo ainda em liberdade, identificado como Lucas Aguiar, com prisão preventiva por furto, roubou roupas de um varal e deixou no local o macacão de presidiário. Depois assaltou um transeunte para pegar a bolsa de couro e algum dinheiro, sem levar a carteira e os documentos. Camarada. Tomou rumo incerto e está sendo procurado. O rapaz come de cabeça baixa.

− Qual és tu nombre?

− Maneco – ele mantém a cabeça baixa para controlar a insegurança.

− Por supuesto – o castelhano balança a cabeça. A mulher intervém para dar um tom natural a uma tardia troca de identidades, melhor do que radicalizar e serem mortos pelo bandoleiro.

− Meu marido é Chivito e os clientes me chamam de Morocha – botões abertos, ela cruza as pernas fora da mesa, laçada alta nas coxas, o corpo firme em apenas uma nádega.

Ela se esforça para falar só português, ao contrário do esposo que mistura palavras em espanhol. Contudo, aparece como uma espécie de eco nas frases o indisfarçável sotaque castelhano. Os dois não são brasileiros, conclui. Pela placa da caminhonete, devem ser uruguaios. Mas podem ser argentinos. Vai saber? Recém-chegado na fronteira, não sabe ainda distinguir a entonação arredondada dos uruguaios e a pronúncia apertada dos correntinos. A senhora é de Montevidéu. Casada na igreja, pai e mãe no altar, mas não restou nem foto do matrimônio. Ficou no passado. O nome do esposo está na aliança que ela usa. Mais idealista que trabalhador, comunista convicto e inconsequente, tornou-se tupamaro, envolvido em ações terroristas contra a ditadura em seu país, e a casa caiu. Eles foram obrigados a fugir. O casal cruzou a fronteira com cobertura dos montoneros argentinos, juventude peronista armada. A repressão militar no Cone Sul é articulada e recrudesce. Os regimes militares se vão e voltam com mais força. As organizações clandestinas começam a sofrer sérios revezes. Entre os desaparecidos, o esposo dela. Sozinha em país estranho, sua fuga para o Brasil foi facilitada por militar desertor de Corrientes. Receberam apoio da guerrilha brasileira. O cachorro é solto e eles se recolhem para dormir com o grasnar das corujas.

O suspeito recebeu um cobertor e a permissão para dormir no catre da dispensa. Tira os tênis com os calcanhares, despe a roupa no escuro. Cheiro de batata, cebola e charque. Acende a vela sobre a lata de cinco litros de azeite argentino. Aproxima da chama o segundo e último cigarro. Recostado na parede, só de cuecas, espicha as pernas na cama de campanha. Entre nuvens de fumaça, observa pela janela entreaberta a placa iluminada da Texaco. Embaixo, o nome gravado: Sentinela Avançado. Coisa de militar. O proprietário seria aposentado ou desertor dos exércitos Argentino ou Uruguaio? Cansado, com sono, não podia fechar o postigo por causa do cheiro do depósito e nem tinha coragem de cerrar os olhos. Notou a reação do casal diante da notícia no rádio. Não há dúvida: concluíram que ele era o elemento caçado pela polícia. Contabiliza as possibilidades. Talvez tenha uma chance: o estrangeiro pode não querer proximidade com os militares da ditadura brasileira.

Raios da noite enluarada atravessam a veneziana do quarto. Ela identifica cada movimento abafado na escuridão. Como o cego que apalpa os móveis, ouve o roçar do gado na mangueira da estância ao lado, a folha da acácia que cai em círculos na pista do posto. Resiste brava a devaneios, não quer pensar, só estimular os sentidos auditivos. Um jogo de sons para não se entregar à tentação. O ronco do marido a exaspera. Levanta-se. Olha-se no espelho de mão. Bate os cabelos negros e ondulados. A pele clara do rosto desfigurada, olheiras. Remexe na gaveta. Encontra o que procura. Passa batom nos lábios carnudos. A porta se abre lentamente. As dobradiças rangem. Em alerta, o homiziado leva a mão embaixo do catre, onde escondeu a tesoura de cortar câmeras, trazida da borracharia. O prevenido talvez morra de velho. A chama da vela ilumina a silhueta, os braços cruzados sobre o peito.

− Chivito já está dormindo, ronca que nem um porco. Vim ver se estás bem acomodado – o jovem puxa o cobertor e larga a tesoura no chão, disfarçadamente. Endireita o corpo, as costas contra a parede.

− Está tudo ótimo, dona.

− Por que não dormes garoto, deves estar exausto da viagem?

− Estou fumando o último.

Pega o cigarro da mão dele, sem deixar de apertar a camisola contra o próprio corpo com o outro braço, a aliança de viúva na mão esquerda. Leva aos lábios, aspira, joga a fumaça para cima e devolve manchado. Ele dá a última tragada, sente o gosto de batom, apaga na tampa da lata. Em passos lentos vai até o postigo, comenta de costas:

− Linda noite!

A estrela da Texaco se destaca no céu estrelado na noite quente, fim de verão. A luz da vela perpassa o tecido quase transparente, o contorno dos quadris, das pernas. Os braços que ela mantinha cruzados caem ao longo do corpo. Ela se vira. A camisola aberta. Os seios um pouco caídos, a barriga saliente, o umbigo escondido nas dobras da pele, os pelinhos, as coxas juntas. Desliza o cobertor. A chama trépida reflete nos olhos castanhos claros. O olhar na barraca armada.

− Apaga a vela – pede.

Ele assopra. A sombra se adensa na penumbra. Ergue a roupa de dormir. Passa a perna por cima. As molas do catre rangem em ritmo lento. Preocupados em não fazer barulho, cada um aproveita ao máximo a oportunidade roubada, sem pressa. Agarra os pés dela, os joelhos dobrados, beija o pescoço, os ombros macios, abocanha os seios, morde os mamilos. Beijam-se. Troca de línguas e salivas.

A rotação da Lua é percebida quando ela desaparece atrás da estrela da Texaco. Deitada de bruços, misto de saciada e arrependida, recompõe aos poucos a respiração. Ele se equilibra na ponta do catre para não cair. O luminoso do posto contorna as nádegas na penumbra. Ele passa a mão de leve. Imóvel, a cabeça virada contra a parede. O cheiro de glicerina nos cabelos. A cadência circular de um tango em Montevidéu. Curva o corpo para se despedir:

− Se o meu marido descobre, te mata – sai.

Contraste: a Smitt-Corona e o lap (Foto de Bruno Todeschini)

Acorda no cantar do galo. Na lata de azeite, a vela apagada e a bagana manchada de batom. Aperta o cigarro na palma da mão. Primeiro, a calcinha no banheiro, agora a mancha de batom no cigarro. São daquelas que gostam de provocar e viver perigosamente? Ou deixou as pistas por sentimento de culpa? De qualquer forma, forneceu indícios para que o esposo descobrisse o que acontecera durante a noite e tivesse motivos suficientes para matá-lo, livrando-os da convivência perigosa. O casal desperta com o ruído de ferros. Chivito vai até a janela, ela espia por trás da espádua. O eventual ajudante está consertando roda de trator, que foi trazida na caçamba de uma caminhonete.

− Pelo menos serve para alguma coisa, poupa as tuas costas – o esposo não consegue ver o sorriso cínico. Rígido e atrasado; comprovou que ele estava na cadeia.

O dono do posto se aproxima com o mate para receber o dinheiro do conserto da câmera.

− Está pronto, sargento – resolve testar sua intuição de que ele é ex-militar.

− Bom trabalho, ordenança – demonstra ter gostado do tratamento e manda o auxiliar colocar dois tonéis vazios na caçamba da velha Ford.

− Vou comprar combustível em Quaraí. A patroa vai junto, repara o posto – quando ele vê o casal partir, tem a sensação de que foi deixado sozinho, propositadamente, no meio do nada. O sentinela avançado desconfiou do ordenança ou a própria mulher confessou tudo. Pelo menos não acabou com a raça dele, conformou-se. Mas se ele foi avisar a polícia? É ruim, hein! Melhor dar no pé.

A F-1 de faróis ligados desponta no crepúsculo. Morocha retorna risonha, com uma Contigo e um pacote da farmácia. Depois daquele dia, voltou a se banhar com sabonete, como antigamente, lavar os cabelos com xampu. A pintar as unhas das mãos e dos pés, sentada numa cadeira na lanchonete sem clientes, um pé no chão e outro no assento, o joelho dobrado, o vestido encolhido, a perna desnuda, nem aí para a presença dos dois homens tomando café na mesma mesa. Usa cremes no corpo, pinga gotas de perfume atrás da orelha, no pescoço e no colo. Sua pele cada vez mais delicada, viçosa, apetitosa. Até as estrias e celulites desapareceram. O sargento, barba por fazer, percebeu o rejuvenescimento. Voltou a ser a garota uruguaia casada com o tupamaro, vivendo na clandestinidade na Argentina, até o marido sumir ao comparecer a um apontamento. Preso e jogado ao mar, talvez. Foi ele quem a protegeu.

A última notícia do Correspondente Renner sempre deixa os cabelos em pé. Militares depuseram a presidente peronista Isabelita Perón, na Argentina, naquele dia 24 de março de 1976.

Dormiu sem a visita no meio da noite. Esfregou os olhos ao acordar. O sol nascia laranja no início do outono. A placa da Texaco havia sumido da janela. Despertou de um sonho? Sente o cheiro forte de batata e cebola no cubículo úmido. Dormiu em depósito de alimentos, para se esconder da polícia em seu encalço, e adormeceu. Em seu sono, estava num posto de gasolina de propriedade de militar expatriado. Tanto atraso na cadeia, que sonhou receber a visita da patroa durante a noite, no quartinho, só de camisola. Veste-se rápido. Atravessa a lanchonete coberta de poeira, sem mesas, refrigerador, fogão, nada. A porta entreaberta. Lá fora está a bomba de combustível, a borracharia. O sargento amarra a mudança na carroceria da Ford, onde fora colocado o luminoso da Texaco, o refrigerador, o fogão, mesas e cadeiras de fechar, tonel, manta de charque, o galo e duas galinhas como na Arca de Noé.

− Tú viens? – pergunta o desertor. A resposta:

− Claro.

­− No tiemos mas lugar para escaparlo. Tiene ditadura por toda la parte. Geisel en Brasil, Strossner en Paraguai e agora una Junta Militar, comandada pelo general Vilela assumiu las rédeas da Argentina. Bamos para o Uruguai, o Bordaberry pelo menos é um civil, da oligarquia rural, por supuesto. Se bem que mais dia, menos dia, os milicos trocam él por outro mas linha dura – menos de três meses depois, em 12 de junho, ele foi substituído, radicalizando a ditadura uruguaia.

O correntino reforçava as amarras da mudança.

− Me ajuda acá, folgado. Bamos nos quedar numa playa desierta, com nuevo puesto da Texaco – sorriu com o canto da boca.

− Em Quaraí, antes de cruzar a fronteira, vou comprar um maiô bem cavado, quero chegar lá como brasileira, não como uruguaia, nada de Morocha, mas Morena – prendia o lenço de portuguesa na cabeça.

A F-1 partiu. No banco inteiriço, a viúva do tupamaro apertada entre o sargento montonero na direção, quepe militar, e o fugitivo brasileiro, boné de banda de rock. Os refugiados na direção da fronteira. Não havia mais lugar para se esconder. As galinhas que ficaram ciscam ao redor do posto de gasolina das quatro bocas, novamente abandonado.

Publicado em 28/7/2015
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