Tibério Vargas Ramos
Os jornalistas substituíram os deuses, os profetas e os filósofos na tarefa de relatar o comportamento e o cotidiano da humanidade. O alucinado e criativo André Malraux buscou no Velho Testamento e no Corão a história da Rainha de Sabá, que seduzira Salomão com um bálsamo utilizado para depilar as pernas, mantendo vivo, há 30 séculos, o ideário do encanto feminino. Em 7 de março de 1934, aos 32 anos de idade, o visionário francês decola de Paris a bordo de um Farman 190, emprestado. Com ele, ia o piloto e um mecânico. A aeronave sobrevoa o deserto da Arábia, o Mar Vermelho e pousa na pista de um forte no golfo de Tadjoura. Após a breve escala, o repórter-escritor retorna à França com fotos e uma história na cabeça para contar a descoberta sobre a capital onde viveu a rainha, seu palácio, os templos, os tesouros, seu fascínio e o romance com o rei dos hebreus. A série de reportagens é publicada pelo jornal Intransigeant, com descrição de ambientes, gestos, diálogos e cenas de paixão.
Até meados do século 20, jornalismo e literatura andaram juntos. Quem ia trabalhar em jornal chegava por dois caminhos. Muitos eram aprendizes ou emergentes no ofício de escrever. Outros, funcionários públicos com intimidade no manejo da língua e ligações facilitadas com o poder. As matérias saíam com longos nariz de cera, penduricalhos linguísticos e subserviência.
As faculdades surgem para preparar profissionais aptos a projetar e executar todo o suporte de informação voltado para a comunicação objetiva, imparcial, clara, concisa, original, imediata e ampla. Em 1952, quando é instalado o curso de Jornalismo da PUCRS, a imprensa brasileira está recém aprendendo a refazer o primeiro parágrafo das matérias. O lead, trazido dos Estados Unidos pelo Diário Carioca, fora popularizado pela Última Hora — uma insólita confluência do sensacionalismo capitalista norte-americano com a proposta editorial populista de esquerda de Samuel Wainer.
Nos anos 60, reproduzimos na faculdade e executamos nas redações gaúchas o “estilo JB”, com austeridade, fidelidade às fontes, acabamento do texto e a introdução do sublead, na concepção de Jânio de Freitas e Alberto Dines. “Quem tem medo do sublead?”, questiona Lago Burnett em A Língua Envergonhada. No fim da década, o texto se descontrai, a diagramação se torna mais leve na concepção de Mino Carta, no Jornal da Tarde, de São Paulo. Valorizam-se os espaços em branco, fontes sem serifa, equilibrando fotos com variados recursos de edição, em especial o olho. No texto, dominam dois antagonismos, ambos vindos dos EUA. Um deles sofre a influência da contra-cultura americana, a frase com fôlego de escafandrista, os parênteses, as idéias e as orações em turbilhão. O outro, mais leve, glamouroso, o chamado new journalism, é importado pela revista Realidade.
O endurecimento do regime autoritário, a partir de 1968, a censura à imprensa, obrigam os jornalistas a escrever nas entrelinhas. Passamos a exercitar e ensinar a dissimulação da frase, a ambiguidade. O texto termina ganhando nova amplitude nos anos 70, a partir da revista Veja. O “padrão Veja” resgata do passado o nariz de cera, introduz a reportagem investigativa, faz denúncias, pesquisa, compara, interpreta fatos, estabelece conexões. A objetividade e a neutralidade são deixadas de lado. A formação cultural, o ambiente social, a linha editorial, a soberba e a prepotência levam ao opinativo. Fica difícil pregar aos estudantes humildade e imparcialidade.
A modernidade decreta a extinção do chumbo na montagem das páginas e logo joga fora, no cesto de lixo, o estilete e a cola utilizados na arte final da fotocomposição. Tudo rápido. Vem a editoração eletrônica. A década de 80 traz novidades gráficas, a partir do USA Today. As páginas se abrem para mapas, tabelas, cor. No texto, a única novidade é a concisão ao extremo. A arte de escrever é reduzida a segundo plano. A narrativa empobrece. Como convencer os alunos que a Folha de São Paulo erra ao redigir em frases soltas, primárias, sem estruturar parágrafos? Missão quase impossível.
O século termina com a explosão cibernética. Invadimos o espaço dos deuses e como represália, a ira divina envia a praga do ctrl-C ctrl-V. O simulacro da cópia. O vírus se espalha e reduz as resistências do jornal no terceiro milênio. A folha de papel, frágil demais, pode ser amassada a qualquer momento.
Não será fácil aos diários sobreviverem às previsões apocalípticas. Terão de apostar em antigas verdades: a informação indispensável, a credibilidade, a notícia em profundidade, o texto diversional como leitura e entretenimento. O jornalismo impresso deve se lançar ao futuro com inspiração no passado. A parceria de jornalismo e literatura, o velho new journalism, que não foi criado nem por Tom Wolfe, muito menos por Truman Capote, como dizem, mas pór Malraux, será sempre infalível. O olhar do jornalista sensível e objetivo em narrativa envolvente – forte, dramática, emotiva, lúdica, com ironia e humor. O leitor colocado dentro de ambientes, diante de pessoas, sem cair em hipérboles jornalísticas. Vamos nos inspirar na capacidade de Malraux ao escrever A Condição Humana, sem ser levado a desvarios capazes de ver palácios, o encanto das pernas lisas da rainha de Sabá e o deslumbramento do rei Salomão ao sobrevoar apenas um deserto. (Tibério Vargas Ramos, ensaio publicado no livro “PUCRS – 50 anos formando jornalistas”, organizado por Beatriz Dornelles, Edipucrs, 2002)