Tibério Vargas Ramos
Ensaios
O encanto da Rainha de Sabá
Ensaio publicado em obra da PUCRS em 2002

Ensaio publicado em obra da PUCRS em 2002

Tibério Vargas Ramos

Os jornalistas substituíram os deuses, os profetas e os filósofos na tarefa de relatar o comportamento e o cotidiano da humanidade. O alucinado e criativo André Malraux buscou no Velho Testamento e no Corão a história da Rainha de Sabá, que seduzira Salomão com um bálsamo utilizado para depilar as pernas, mantendo vivo, há 30 séculos, o ideário do encanto feminino. Em 7 de março de 1934, aos 32 anos de idade, o visionário francês decola de Paris a bordo de um Farman 190, emprestado. Com ele, ia o piloto e um mecânico. A aeronave sobrevoa o deserto da Arábia, o Mar Vermelho e pousa na pista de um forte no golfo de Tadjoura. Após a breve escala, o repórter-escritor retorna à França com fotos e uma história na cabeça para contar a descoberta sobre a capital onde viveu a rainha, seu palácio, os templos, os tesouros, seu fascínio e o romance com o rei dos hebreus. A série de reportagens é publicada pelo jornal Intransigeant, com descrição de ambientes, gestos, diálogos e cenas de paixão.

Até meados do século 20, jornalismo e literatura andaram juntos. Quem ia trabalhar em jornal chegava por dois caminhos. Muitos eram aprendizes ou emergentes no ofício de escrever. Outros, funcionários públicos com intimidade no manejo da língua e ligações facilitadas com o poder. As matérias saíam com longos nariz de cera, penduricalhos linguísticos e subserviência.

As faculdades surgem para preparar profissionais aptos a projetar e executar todo o suporte de informação voltado para a comunicação objetiva, imparcial, clara, concisa, original, imediata e ampla. Em 1952, quando é instalado o curso de Jornalismo da PUCRS, a imprensa brasileira está recém aprendendo a refazer o primeiro parágrafo das matérias. O lead, trazido dos Estados Unidos pelo Diário Carioca, fora popularizado pela Última Hora — uma insólita confluência do sensacionalismo capitalista norte-americano com a proposta editorial populista de esquerda de Samuel Wainer.

Nos anos 60, reproduzimos na faculdade e executamos nas redações gaúchas o “estilo JB”, com austeridade, fidelidade às fontes, acabamento do texto e a introdução do sublead, na concepção de Jânio de Freitas e Alberto Dines. “Quem tem medo do sublead?”, questiona Lago Burnett em A Língua Envergonhada. No fim da década, o texto se descontrai, a diagramação se torna mais leve na concepção de Mino Carta, no Jornal da Tarde, de São Paulo. Valorizam-se os espaços em branco, fontes sem serifa, equilibrando fotos com variados recursos de edição, em especial o olho. No texto, dominam dois antagonismos, ambos vindos dos EUA. Um deles sofre a influência da contra-cultura americana, a frase com fôlego de escafandrista, os parênteses, as idéias e as orações em turbilhão. O outro, mais leve, glamouroso, o chamado new journalism, é importado pela revista Realidade.

O endurecimento do regime autoritário, a partir de 1968, a censura à imprensa, obrigam os jornalistas a escrever nas entrelinhas. Passamos a exercitar e ensinar a dissimulação da frase, a ambiguidade. O texto termina ganhando nova amplitude nos anos 70,  a partir da revista Veja. O “padrão Veja” resgata do passado o nariz de cera, introduz a reportagem investigativa, faz denúncias, pesquisa, compara, interpreta fatos, estabelece conexões. A objetividade e a neutralidade são deixadas de lado. A formação cultural, o ambiente social, a linha editorial, a soberba e a prepotência levam ao opinativo. Fica difícil pregar aos estudantes humildade e imparcialidade.

A modernidade decreta a extinção do chumbo na montagem das páginas e logo joga fora, no cesto de lixo, o estilete e a cola utilizados na arte final da fotocomposição. Tudo rápido. Vem a editoração eletrônica. A década de 80 traz  novidades gráficas, a partir do USA Today. As páginas se abrem para mapas, tabelas, cor. No texto, a única novidade é a concisão ao extremo. A arte de escrever é reduzida a segundo plano. A narrativa empobrece. Como convencer os alunos que a Folha de São Paulo erra ao redigir em frases soltas, primárias, sem estruturar parágrafos? Missão quase impossível.

O século termina com a explosão cibernética. Invadimos o espaço dos deuses e como represália, a ira divina envia a praga do ctrl-C ctrl-V. O simulacro da cópia. O vírus se espalha e reduz as resistências do jornal no terceiro milênio. A folha de papel, frágil demais, pode ser amassada a qualquer momento.

Não será fácil aos diários sobreviverem  às previsões apocalípticas. Terão de apostar em antigas verdades: a informação indispensável, a credibilidade, a notícia em profundidade, o texto diversional como leitura e entretenimento. O jornalismo impresso deve se lançar ao futuro com inspiração no passado. A parceria de jornalismo e literatura, o velho new journalism, que não foi criado nem por Tom Wolfe, muito menos por Truman Capote, como dizem, mas pór Malraux, será sempre infalível. O olhar do jornalista sensível e objetivo em narrativa envolvente – forte, dramática, emotiva, lúdica, com ironia e humor. O leitor colocado dentro de ambientes, diante de pessoas, sem cair em hipérboles jornalísticas. Vamos nos inspirar na capacidade de Malraux ao escrever A Condição Humana, sem ser levado a desvarios capazes de ver palácios, o encanto das pernas lisas da rainha de Sabá e o deslumbramento do rei Salomão ao sobrevoar apenas um deserto. (Tibério Vargas Ramos, ensaio publicado no livro “PUCRS – 50 anos formando jornalistas”, organizado por Beatriz Dornelles, Edipucrs, 2002)

Publicado em 8/8/2015
voltar

Desenvolvido por RaioZ.com Desenvolvido em Wordpress