Tibério Vargas Ramos
Ensaios
Leonam, o avesso de Manoel
Leonam fala sobre o passado, a vida e o futuro longe da Famecos
Por Juan Domingues (*)
Leonam e Tibério: uma convivência de 50 anos que começou em Alegrete, em jornal e na PUCRS (Foto Elson Sempé Pedroso)

Leonam e Tibério: uma convivência de 50 anos que começou em Alegrete, em jornal e na PUCRS (Foto Elson Sempé Pedroso)

Marques viveu a infância em uma estância encravada no limite entre São Francisco de Assis e Alegrete, hoje município de Manoel Viana, na região da Campanha do Rio Grande. Nas terras férteis do pai, grande criador de gado de corte, o menino franzino passava os dias gravitando entre os peões, admirando o trabalho pesado daqueles que só sabiam da vida lidar com o campo e os animais. Costumava acompanhar a peonada Pampa afora e brincar de fazendeiro, manipulando pequenos pedaços de ossos que imitavam cavalos, vacas e outros bichos.  Aos 70 anos de idade, Marques não é mais Marques. É Leonam. Mas continua com a mesma simplicidade do menino de Manoel Viana. “Eu nunca quis ser patrão. Sempre quis ser peão”.

O desejo não se confirmou na prática, mas no espírito. Marques sonhou em ser médico. Deixou a Campanha no vácuo e se mudou para Porto Alegre. Queria estudar para ingressar na Faculdade de Medicina. Em uma tarde iluminada pelo sol porto-alegrense, Marques tentava, sem sucesso, elucidar os enigmas obscuros da Química Orgânica. Depois de horas lutando contra aquele conteúdo inimigo, desistiu. E viu que a linha entre querer Medicina e ser médico se tornou um caminho longo, infinito, sem volta. E construiu uma lista de profissões disponíveis. Registrou duas dezenas de carreiras. No pé da página, reluzia a palavra Diplomata. “Pensei rápido, eu nunca seria um embaixador”. Um centímetro papel acima, um conjunto de dez letras mudaria para sempre o destino do filho do estancieiro Wladimir Álvares da Cunha: Jornalismo.

Wladimir era um homem rico e culto. A criação de gado no isolamento da Campanha não foi capaz de torná-lo refratário aos livros e à informação. Wladimir lia muito. Quando precisava ir à cidade, voltava com um pequeno carregamento de livros e revistas. Marques adorava. “O pai trazia as revistas Manchete e Life, em espanhol”.  Mas a notícia de que havia ingressado no curso de Jornalismo da Famecos não foi recebida com balões ou fogos de artifício na estância. Wladimir pensava que o filho poderia ser médico. Não foi rude. Aceitou, resignado. Homem inteligente, percebeu que, em algum momento, Marques tinha tido um encontro com o destino. Um encontro para sempre. “Daquele momento em diante, eu construí a vida com as minhas próprias forças”.

Traduzindo, quis dizer que havia chegado a hora de se soltar totalmente das amarras da família de estancieiros, de ancestrais ricos ligados à política e à agricultura rio-grandense, como o tataravô Manuel Marques de Sousa e o avô Augusto Marques da Cunha. Estudou quatro anos na Famecos, de 1967 a 1970. Durante uma década, trabalhou em jornais importantes da época, como a extinta Folha da Tarde. “Eu não nasci jornalista. Eu me fiz jornalista”.

No começo dos anos 80, Marques deixou de ser Marques. Como professor da Famecos, passou a ser chamado de Leonam (Manoel, ao contrário).  Viveu os últimos 34 anos ensinando os mistérios da reportagem, as malandragens da apuração jornalística, a essência dos títulos, as encruzilhadas dos parágrafos, as reticências das vírgulas e dos pontos. Mostrou os caminhos do texto, a alma do jornalista. “Eu não nasci professor. Eu me fiz professor”. E, como professor, virou um ícone para um punhado de gerações de estudantes. É um ícone para uma galáxia de amigos.

Desde o começo do segundo semestre deste ano, Marques Leonam Borges da Cunha decidiu que era hora de deixar a sala de aula. “Fiz muitas assembleias gerais comigo mesmo até tomar a decisão de parar”. Com o mate na mão, acomodado em uma confortável sala de seu apartamento, na Avenida Independência, Leonam me disse que o lugar onde se sente bem, mesmo, é no campo. Na Campanha. No Pampa. “O cheiro, o silêncio, não sei explicar”.

Todos os dias, reflete sobre a possibilidade de viver um pouco em Porto Alegre, um pouco em algum ponto oriental do Uruguai, de preferência próximo à estrada do Vichadero, a 30 quilômetros de Rivera, onde costuma interromper a viagem até Montevidéu para ocupar a sombra de um cinamomo e tomar um mate com a mulher. “Sou louco pelo Uruguai”.

Leonam ainda tenta se acostumar com a aposentadoria. Os dias são longos. Os feriados, permanentes. Como não nasceu aposentado, vai precisar “se fazer aposentado”, da mesma maneira que se fez jornalista e professor. “Parece que sou um paraquedista de primeira viagem. Saltei, mas ainda não sei onde vou cair. Entende?”

Passa os dias recebendo convites para entrevistas. Não deixa de atender ninguém. Não reclama. Ele sabe que o guri da Campanha agora colhe os frutos que plantou. Plantou simplicidade. Não foi estancieiro nem rico e poderoso como Manuel Marques de Sousa. Foi o contrário. Foi apenas Leonam. Foi o avesso de Manoel. E o avesso de Manuel também.

(*) Juan Domingues é professor da Famecos-PUCRS de Jornalismo e Literatura, entre outras disciplinas.

Publicado em 15/9/2015
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