Tibério Vargas Ramos
Ensaios
Construiu uma Universidade enquanto a morte não chega
No Cinquentenário da inauguração oficial do campus da PUCRS (1968-2018), resgate ao seu criador, José Otão, reitor durante 24 anos, morto exatamente 40 anos atrás (1978-2018)

Irmão José Otão (1910-1978) / Foto Ana Bastos/ Arquivo Ascom

Tibério Vargas Ramos (*)

 

O cálice de água com gás sobre a mesa. Todo o gabinete cercado por armários fechados. Alguns altos, outros baixos, sobre estes, relíquias religiosas, peças artesanais, porcelanas e miniaturas ganhas de presente. Uma Bíblia finamente encadernada, de capa vermelha, de destaca. Em cada porta ele sabia exatamente o que havia. Podiam ser livros, projetos, relatórios, anuários, processos administrativos, plantas, estatísticas, pesquisas, teses de mestrado e doutorado, jornais e revistas. Abriu um compartimento e retirou um punhado de jornais. “Leva para a Famecos”, me pediu. Havia desde a primeira edição do Jornal da PUC, editado pelos alunos em sala de aula, a partir de 1967. Um dos números publicava uma reportagem minha sobre a Escola de Engenharia Mecânica.

A larga escrivaninha do Irmão José Otão (1910-1978), reitor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul de 1954 até sua morte em 1978, aos 67 anos de idade, era repleta de documentos, pastas, impressos e jornais, todos separados em pilhas, para orientá-lo. Os que não cabiam em cima ficavam embaixo, no espaço entre as gavetas e o tampo suspenso em armação de ferro, moda na época. Atrás dele, as portas de madeira das estantes estilos Luiz XV e as bandeiras do Brasil e do Vaticano, amarela e branca. Diante de sua cadeira giratória, duas pilhas menores de papéis, com material para despacho imediato. Os envelopes de correspondências estavam empilhados separados. No outro lado da mesa, uma cadeira de aproximação para sentar o interlocutor. Eu era de casa, ficava em pé, aguardando as orientações. Ele abre um convite para uma solenidade na Escola Militar. “Vais me representar”, o reitor vinha demonstrando crescente atenção por mim. Levei um susto. “Irmão Otão, eu não tenho nem terno”, cometei envergonhado. Não se tratava de um indelicado pedido de aumento. Era a pura verdade. Havia vendido o meu num brique de roupas usadas. Não era fácil sobreviver como assessor de imprensa pela manhã e repórter de polícia à tarde, pagar aluguel, colocar gasolina num Volkswagen 68, cor vinho, beber cerveja e ver os jogos do Internacional. Ele olhou para a minha jaqueta Lee, os cabelos longos, a barba, e esboçou quase um sorriso. “Pode deixar, eu mando o Braz” (Braz Aquino Brancato, chefe de gabinete, meu amigo e conterrâneo de Alegrete). Que alívio!

As canetas, lápis e espátula para abrir as cartas estavam enfiados num pote de porcelana sobre a mesa. A pequena imagem da Virgem Maria parecia olhar para ele. Talvez protegê-lo. A flor natural num vaso (cilíndrico-estreito-vidro-transparente), acariciada pelo sol da janela, transmitia suave perfume. O telefone moderno tinha teclas para a secretária fazer a legação ou para ele ser orientado por ela antes de atender. Caso de nepotismo que garante confiança e carinho. Catarina era sobrinha dele e tratava o tio com zelo ímpar. Casada, sem filhos, tinha a voz e os gestos de uma freira. Cabelo Chanel, bem escovado, as mãos atraíam a atenção, as unhas levemente encurvadas, marca de família. Era ela quem renovava a flor e arrumava diariamente o calendário sobre a escrivaninha com ajuste rotativo do dia, data da semana e mês que pareciam marcar uma sentença de vida.

Campus da PUCRS no final da década de 70, à esquerda o Hospital São Lucas, inaugurado em 1976 (Reprodução)

José Otão conviveu oito anos com câncer no estômago. Nos últimos seis anos, eu estive ao seu lado como assessor de imprensa. Nos derradeiros meses surgiram erupções na pele que ele disfarçava com discretos curativos. Nunca o vi se queixar. Apenas disfarçava o incômodo no aparelho digestivo bebendo pequenos goles de água mineral. Figura internacional, convidado para visitar universidades em todos os continentes, líder mundial de reitores, aproveitava as viagens para consultar e trazer novos medicamentos. Sabia que a cura era impossível, mas queria estender a vida para continuar construindo uma Universidade exemplar, moderna na ciência e ao mesmo tempo com preceitos tradicionais de cultura e saber, católica, para formar homens e mulheres para o futuro e um mundo solidário, ético, fraterno. Sua escolha de missão.

Getúlio havia se matado e José Otão assumiu a Reitoria da PUCRS em 8 de dezembro de 1954, uma quarta-feira, em substituição ao cônego Alberto Frederico Etges (1910-1996, bispo em 1959), que encerrava seu mandato de três anos. Na noite quente, estava lotado o salão nobre do Colégio Rosário, no centro de Porto Alegre, onde funcionava a PUC. Em seu discurso de posse, o novo reitor de 43 anos de idade prometeu: “Na direção da instituição seguiremos o exemplo dos administradores passados, guardando-nos de precipitações ou renovações apressadas, planejando as realizações, estruturando os empreendimentos, de modo a consolidar a gigantesca obra já realizada e promover em estilo crescente a concretização cada vez mais completa dos altos objetivos da Universidade.”

Ao assentar a pedra fundamental do prédio da Famecos, em 1971, Otão já estava doente havia mais de um ano (Foto Mário Shardong, professor de Fotografia no Curso de Jornalismo)

Naquele ano de 1954, Porto Alegre tinha 400 mil habitantes e a PUCRS possuía 1.419 alunos em apenas seis áreas do conhecimento: Economia, Filosofia, Direito, Odontologia, Serviço Social e Psicologia. Estavam colando grau, em dezembro, 422 formandos. O Curso de Jornalismo, primeiro do Estado, existia há dois anos, desde 1952, agregado à Filosofia. O Concílio Vaticano II, iniciado em 25 de dezembro de 1961, pelo papa João XXIII (1881-1963) e concluído oficialmente em 8 de dezembro de 1965, pelo papa Paulo VI (1897-1978), baixou uma orientação, através do decreto “Inter Mirifica”, aprovado em 4 de dezembro de 1963, para que as Universidades Católicas  criassem cursos de “meios de comunicação social”, para a formação de profissionais com “visão espiritual, científica e moral cristã”, para fazerem frente à dicotomia da Guerra Fria, que dividiu o mundo em dois blocos, liderados pelos Estados Unidos e a União Soviética, capitalismo e comunismo. A Universidade Católica do Chile e a PUC do Rio Grande do Sul, esta por orientação do Irmão Otão, foram as duas primeiras a aderir à proposta do Vaticano, na América Latina. Em 1° de dezembro de 1965, a Escola de Jornalismo da PUCRS, criada em 22 de abril de 1964, com cursos de Jornalismo e Propaganda, foi transformada em Faculdade dos Meios de Comunicação Social (Famecos). A proposta da Igreja Católica para os cursos de Jornalismo, Publicidade e Relações Públicas cita Lucas (“iluminar a todos que se encontram nas trevas, para dirigir nossos passos no caminho da paz”), e conclui que a Comunicação deve “promover o desenvolvimento especialmente dos mais fracos, apoiados pela fraternidade universal, exigência da natureza humana”.

Em 1978, quando da morte de José Otão, a Universidade Católica de Porto Alegre ostentava 16 mil estudantes, 1.200 professores, mais de 30 cursos superiores e pós-graduação nas áreas da Sociologia, Filosofia, Linguística, Buco-Facial, Pedagogia e Psicologia. O campus de 50 hectares, dentro da capital, construído por ele em 11 anos (1957-78), os últimos oito convivendo com grave doença, tinha 130 mil metros quadrados de área construída em 21 prédios, além de faculdades em Uruguaiana e campus avançado em Benjamin Constant, no Amazonas. “O magnífico campus surgiu do nada, sob sua criteriosa e vigilante administração”, destacou o cardeal Vicente Scherer (1903-1996), chanceler da PUCRS de 1948 a 1981, ao oficiar missa de corpo presente, no dia seguinte ao falecimento do reitor, na Capela Universitária.  “Hoje choramos seu desaparecimento de nosso meio e de sua atividade, mas também nos alegramos com tudo o que fez de belo, fecundo, e permanente como testemunho de sua vida, como exemplo de fidelidade a Deus e à coletividade rio-grandense”, disse o cardeal em emocionada despedida.

Durante seu extenso mandato de 24 anos, José Otão teve como vice-reitor durante nove anos o professor Manoel Coelho Parreira (de 1954 a 1963); o professor de Direito Institucional Público Francisco Juruena (1910-1990) exerceu o cargo dez anos, de 1964 a 1974, e o Irmão Liberato (Wilhelm Hunke, 1919-1999) participou de seu último período de 1975 a 1978. Nascido na Alemanha e professor de Letras, o vice cumpriu o mandato até o fim do exercício, em 29 de dezembro, quando foi escolhido novo reitor, Norberto Rauch (1929-2011). Liberato voltou a ser vice. Rauch foi reitor também durante 24 anos. Em quase meio século, a PUCRS teve dois reitores. Isto é que se pode chamar de “estabilidade administrativa” numa entidade privada, sem obrigações democráticas.

Pedra fundamental do campus em 1957: Otão, de batina, recepcionou o prefeito Brizola e o governador Meneghetti (Arquivo Ascom)

O irmão Otão, um educador com formação científica e humana, diplomado em Engenharia Civil e Filosofia, estava decidido a erguer, nos anos 1950, o campus da primeira Universidade Marista do mundo, congregação com tradição internacional apenas nos ensinos fundamental e médio. A proposta inicial era transformar o espaço do Colégio Rosário, no centro da cidade, num campus, com o surgimento de novos prédios para a expansão da Universidade, criada em 9 de novembro de 1948, no pós Segunda Guerra mundial, e assim poder abrigar novos cursos e áreas complementares de ensino e pesquisa. O reitor procurou o prefeito Leonel Brizola (1922-2004) para obter licença para as edificações. A conversa se estabeleceu entre dois engenheiros. “Irmão Otão, por que vocês não constroem o novo campus na Chácara do Colégio Champagnat?” A proposta foi considerada interessante.

Em 1957, começou a ser construída a futura Cidade Universitária junto ao Colégio Champagnat, entre as avenidas Ipiranga e Bento Gonçalves, no bairro Partenon, a 12 quilômetros do centro de Porto Alegre. A pedra fundamental foi assentada no dia 9 de março, no local onde seria construída a Faculdade de Odontologia, primeiro prédio do campus. Estavam presentes à cerimônia, o governador Ildo Meneghetti (1895-1980) e o prefeito Brizola, inimigos políticos. O reitor, na época, ainda usava batina.

Nascido em Garibaldi, Rio Grande do Sul, em 20 de julho de 1910, José Stefani entrou na congregação dos Irmãos Maristas em 1926, aos 16 anos de idade, adotando o nome religioso de José Otão. Chegou a comemorar Jubileu de Ouro de vida religiosa, em 1976, dois anos antes de sua morte. Aproveitou a oportunidade dada pelos Maristas para se tornar engenheiro civil com formação humanística. Professor de Ciências Exatas e Humanas, extremante pontual, o irmão Otão tinha grande facilidade de expor o conteúdo das matérias. Despontou como um novo talento da ordem religiosa. Quando o missionário Charles Désiré Joseph Herbaut (1887-1970), irmão Afonso, nascido em Lille, na França, Superior Provincial dos Irmãos Maristas no Rio Grande do Sul, decidiu criar em 1948, em Porto Alegre, a primeira Universidade Católica da congregação, escolheu como primeiro reitor o professor, filósofo cristão e conservador Armando Câmara (1898-1975), de 60 anos de idade, para dar representatividade à nova instituição, e para vice indiciou um jovem professor de 38 anos: José Otão. O irmão Afonso já havia lançado em 1931 o embrião da Universidade, com nove alunos, ao fundar a Escola Superior de Ciências Políticas e Econômicas, primeira faculdade isolada. Em 48, já tinham sido agregados três novos cursos: Direito, Filosofia e Serviço Social. Em 1º de novembro de 1950, o Papa Pio XII conferiu à nova Universidade o título de Pontifícia, tornando-a uma PUC, passando a chamar-se Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Concluído o primeiro triênio administrativo, com Armando Câmara eleito senador, tomou posse outro reitor, o cônego Alberto Etges, indicado pela Cúria Metropolitana, e como vice Roque Maria, irmão de Otão. Este passou a ser diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, até assumir a Reitoria em 54, com sucessivas reconduções durante mais de duas décadas, até sua morte.

Costa e Silva e José Otão na Escola de Mecânica (Arquivo Ascom)

Na “História da PUCRS”, escrita pelos irmãos Faustino João (1925-2002) e Elvo Clemente (1921-2007), colaboradores próximos, o reitor é descrito como uma pessoa “educada, contida, ar de seriedade, mas capaz de palavras afáveis e até de contar histórias leves em contatos de maior intimidade”. Ele morava na residência dos irmãos, sexto e sétimo andares do prédio da Reitoria, na Cidade Universitária, frente ensolarada para a Avenida Ipiranga. Os quartos individuais eram acanhados e simples, como um monastério, com refeitório coletivo e sala para leituras e assistir televisão. Era um local reservado e estive ali somente uma ou duas vezes, em contatos rápidos. Antes das 8h, Otão descia para seu gabinete, no quinto andar. O reitor atendia a todos de maneira cordata, desde funcionários, professores, alunos e autoridades, lembram Elvo e Faustino no livro. Ouvia com atenção e entendia claro e com rapidez as colocações. No exercício da administração da PUCRS, destacam os autores, ele costumava tomar decisões após maduro exame e consulta a assessores, mas dificilmente voltava atrás.

Quando começaram a surgir os primeiros prédios da Cidade Universitária – Odontologia, Reitoria, Filosofia e Engenharia – parecia que eles estavam de costas, pois a entrada era pela Avenida Bento Gonçalves. Ainda não havia o prolongamento da Avenida Ipiranga, às margens do Arroio Dilúvio. Mas era preciso confiar no engenheiro-reitor. Os edifícios estavam voltados para a futura avenida. Um olhar para o porvir. Em pouco tempo a Bento já era a entrada secundária. A linha de ônibus Santa Catarina, bairro Partenon, trajeto pela Bento, e o coletivo da Carris, itinerário Centro-PUC, entravam no campus. A parada do Catarina era ao lado da Engenharia, prédio 8. Havia uma rótula onde o motorista manobrava. Os passageiros da Carris embarcavam nos fundos da Filosofia, prédio 5. Carros podiam estacionar nas alamedas entre os edifícios. Bebida e cigarro liberados nos bares. As namoradas eram buscadas de automóvel na porta da faculdade. Momento de demostrarem seu poder de sedução. Os colegas faziam a volta no prédio, cabisbaixos, para apanharem o ônibus nos fundos.

O campus se transformou num canteiro de obras, com recursos na congregação, do Vaticano, doações filantrópicas, garantidas pela figura do Irmão Otão, e empréstimos governamentais subsidiados para a educação. Sob o comando do reitor-engenheiro, surgiam a cada ano novas edificações nos anos 50 e 60. Salão de Atos, Reitoria, Pavilhão da Mecânica. Os prédios baixos da Física, Matemática e Biociências. Em 1967, foi comprado o primeiro computador. Mais de meio século atrás!

Cara a cara: na inauguração oficial do campus em 1968, Otão pediu mais verbas ao ditador Costa e Silva (Arquivo)

Neste ano de 2018, registra-se o cinquentenário da inauguração oficial da Cidade Universitária da PUCRS. No dia 16 de setembro de 1968, a administração da Católica foi transferida oficialmente do Colégio Rosário para o prédio da Reitoria, no campus do bairro Partenon. O segundo Presidente da República da ditadura militar, marechal Arthur da Costa e Silva (1899-1969), veio a Porto Alegre e cortou a fita simbólica, um ano antes de sua morte. Presente o governador nomeado, coronel da Brigada Militar, Perachi Barcelos (1907-1996), que cheguei a entrevistá-lo em 1969, para a Zero Hora, de sandálias. Fim da picada. Costa e Silva lembrou que seu único filho estudou num colégio Marista, a Escola São José, na Tijuca, Rio de Janeiro, e “recebeu orientação e educação para o resto da vida”. A Universidade tinha dez faculdades, sete institutos, órgãos culturais de apoio e 5.000 alunos, entre eles, eu, calouro no Jornalismo. “As Universidades Católicas se colocam, assim, a serviço da comunidade local, bem como das sociedades mais amplas, nacionais e internacionais. Por isso, julgam que, para a realização de seus objetivos, devem obter sólido apoio não somente do público em geral e das sociedades filantrópicas, como dos governos”, José Otão aproveitou para pedir mais verbas ao ditador, cara a cara. O reitor chegara para a solenidade na véspera. Retornava de viagem à Austrália e Congo, convocado pela Associação Internacional de Universidades Católicas (AIUC). Ele cumpria extensa agenda nacional e no exterior.

Os domingos e feriados eram aproveitados para leituras na poltrona do quarto e preparação de artigos e projetos em seu gabinete vazio na Reitoria. Usava a parte de dentro dos envelopes abertos com espátula para redigir rascunhos. Quando eu era aluno, não imaginava que aquela universidade crescia também com pequenas economias. Como o pai de família que usa o sabonete até desaparecer entre os dedos. Otão escreveu livros de ensaios sobre Educação e era colaborador permanente do Correio do Povo. Redigia a mão, com uma letra pequena, retangular e perfeitamente legível, e entregava na segunda-feira para a sobrinha-secretária datilografar. Ao ver os originais, de fácil leitura, me prontifiquei a datilografá-los, afinal, era eu que os levava ao Correio. Transferiu-me, então, a incumbência. Certo dia, ao passar os olhos num original, enquanto ele me ordenava outras divulgações, cometei: “Irmão Otão, este artigo aborda um tema educacional de repercussão nacional, posso transformá-lo numa entrevista exclusiva para o Correio do Povo, com maior destaque.” Ele me olhou. “Podes aproveitar como quiseres.” No outro dia, o material foi publicado com manchete no alto da página de “Casas de Ensino” e foto. A partir deste dia recebi a permissão de transformar os artigos em entrevistas, sempre que julgasse oportuno. Confiança e carta branca.

Otão não era um orador eloquente, mas claro e convincente. A voz não trazia o sotaque característico dos religiosos de origem italiana, numa mistura de dialeto e a influência das ladainhas religiosas. Poliglota, ele falava francês e inglês e as línguas estrangeiras tornaram sua voz impessoal, límpida, transparente, universal. Sua aparência física parecia o esboço de um desenho, devido à magreza no fim da vida, nariz e orelhas. Mas ele tinha uma luz interior, um magnetismo. Quando entrava num local, mesmo no meio de celebridades da política, ou sentava-se a uma mesa de autoridades, chamava a si as atenções. Até porque ele se transformou na forma humana da PUC, vista em público com raridade. Sua presença se tornou uma espécie de deferência especial ao evento.

Brinde de José Otão com líderes estudantis, entre eles, Pedro Simon (Arquivo Ascom)

Projeto foi apresentado na Câmara de Vereadores, nos anos 1970, para conceder o título de Cidadão de Porto Alegre a José Otão, nascido em Garibaldi, filho de imigrantes italianos, por seu empreendedorismo. Colocado o pedido em votação, foi derrotado. A alegação dos opositores era de que Otão mantinha relação com a ditadura militar para fazer a PUC crescer. Para manter a estabilidade da instituição em seu longo mandato, diante das oscilações políticas do Brasil, ele estabeleceu diálogo com os governos de Café Filho, Juscelino, Jânio, Jango, Castello, Costa e Silva e Geisel, para obter apoio e financiamentos do Ministério da Educação. Sempre prestigiou o DCE (Diretório Central de Estudantes), ainda no Colégio Rosário, no início de sua administração, quando um dos líderes dos alunos era o acadêmico de direito Pedro Simon, futuro governador e senador. Durante a gestão de Otão, em plena ditadura, ele nunca permitiu que a Brigada Militar entrasse no campus. Tinha a compreensão de que uma Universidade é um território livre. A recíproca acontecia e os alunos jamais promoviam depredações nos prédios. O irmão Modesto Girotto era quem dialogava diretamente com as lideranças estudantis. Um presidente do DCE chegou a viajar com o reitor a Roma para uma audiência com o Papa Paulo V. Divulguei a foto nos jornais. Depois de José Otão, várias vezes a PM invadiu o campus para conter manifestações de alunos.

Manhã de domingo. Otão olha pela janela de seu dormitório. À esquerda, o prédio da Famecos. Com uma pá de pedreiro, o engenheiro-reitor assentou a pedra fundamental em 5 de novembro de 1971. Lembra bem daquele dia de sol. Estava debilitado, há mais de um ano convivia com câncer no estômago. Tinha passado por procedimento cirúrgico. Não sabia quanto tempo teria de vida. Estava resistindo bem mais do que imaginava. O 7 era o primeiro prédio no Brasil construído especialmente para abrigar uma Faculdade de Comunicação, com estúdios de rádio e televisão, redações, agências, laboratórios. O projeto era arrojado, moderno e ele tinha muita pressa. A fachada da Ipiranga lembra a sede da Zero Hora, inaugurada em 1969. É muito bonita, mas escondida por árvores. A entrada utilizada é pelos fundos do prédio. A obra durou somente um ano, em dezembro de 1972 estava concluída. O prédio 15, bem no meio do campus, da mesma época, era funcional, para abrigar a Faculdade de Educação, com amplas escadas, salas de aula e pequenos gabinetes para atender os alunos para orientação de projetos e estudos, na graduação e no pós. Mais à esquerda, as obras da Biblioteca Central, começadas em 1975. O projeto inicial era um prédio baixo, com espaço para o acervo, mas também ambientes para a leitura e estudos, fechados e abertos, com jardins e chafariz. Nos anos 2000, foi erguida uma torre de 14 andares no pátio interno. Alta tecnologia deu lugar ao ambiente lúdico do passado. José Otão não tinha como apressar a construção da Biblioteca, apesar da vida por um triz. Quase todos os recursos eram canalizados para a conclusão do Hospital Universitário São Lucas, sua “menina dos olhos”, no outro lado da Avenida Ipiranga, numa expansão do campus. O complexo hospitalar era indispensável para a qualificação da Faculdade de Medicina, iniciada em 1970.

O hospital escola foi inaugurado em 29 de outubro de 1976, com a presença do Presidente da República, general Ernesto Geisel. O São Lucas tinha 40 mil metros de área construída, 600 leitos, 27 ambulatórios e farmácia. “O hospital, como centro de atendimento e prática profissional, é o complemento natural da Faculdade de Medicina desta casa de Ensino Superior”, enfatizou José Otão. A ditadura militar continuava em vigor e para cobrir o evento, podendo me aproximar de Geisel e Otão para registrar seus pronunciamentos, tive de ser credenciado com uma carteira especial expedida pela Presidência da República, com faixas verde e amarela na diagonal. Devo tê-la até hoje em algum lugar. “A inauguração do Hospital da PUC, que será seguida dentro de alguns dias do início efetivo do recebimento de pacientes para as necessidades de internamento e tratamento, é um fato singular altamente auspicioso para a Universidade”, completou o reitor. Estiveram presentes à solenidade, o governador indireto Sinval Guazzelli e o prefeito nomeado de Porto Alegre, Guilherme Socias Vilela. “A inauguração do Hospital vem representar um passo gigante na ação social que a Universidade, através da Faculdade de Medicina, poderá prestar à população da cidade, do Estado e mesmo do País, visto estarem previstos alguns Institutos Especializados, dos quais já funciona o de Geriatria, com uma possibilidade de ação extensa e profunda”, asseverou Otão.

O cálice de mineral com gás sobre a mesa de trabalho, discretos curativos para cobrir erupções no pescoço, rosto e nas mãos, ainda mais magro, as orelhas de abano salientes, o cabelo ralo, a gravata apertava o colarinho, o casaco sobrava nos ombros, mas José Otão resistia como um bravo. Em 20 de maio de 1977, inaugurou a Capela Universitária, na entrada do campus, em projeto arrojado do arquiteto Porto Alegre. “Esta Capela será o centro dos movimentos cristãos da Universidade, das cerimônias religiosas; o ponto de encontro de todas as boas vontades, com vistas à oração, à reflexão, à meditação, à contemplação”, disse o Otão no púlpito. “Será o lugar onde se fala e se escuta, se louva, se agradece e se pede”, acrescentou. “Deus está em todo o lugar. Deus está em cada alma (…), como instrumento de paz e repouso, como conselheiro da tranquilidade e do reconforto.”

Dia 4 de abril de 1978, José Otão foi internado no Hospital São Lucas. Estava em fase terminal. Sua resistência heroica chegara ao fim. Um mês de vida no máximo. Faleceu exatamente na hora em que começava a trabalhar todos os dias. Terminara o Feriadão de 1° de Maio, que caíra numa segunda-feira. Ele morreu às 8h de terça-feira, 2 de maio, quando as aulas do turno da manhã estavam começando. O campus repleto de estudantes, como ele teria gostado de ver pela última vez. Eu e a fotógrafa Ana Bastos estávamos chegando para trabalhar no Centro de Informação (como se chamava na época a Assessoria de Comunicação Social, Ascom). Morreu no Hospital que construiu. Foi velado na Capela que inaugurara no ano anterior. Só ficou inacabada a Biblioteca Central. Mas se encontrava quase pronta. Foi inaugurada pelo seu sucessor, Irmão Liberato, em 29 de novembro daquele ano, com o nome de Biblioteca Central Irmão José Otão.

 

(*) Título e texto inspirados livremente na novela “Enquanto Agonizo” (1930), de William Faulkner, e no livro “Con Borges” (dezembro de 2016), de Alberto Manguel

Publicado em 28/2/2018
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