Tibério Vargas Ramos
(trecho)
Capítulo VII: A Santa Ceia

O rapaz anda de um lado para o outro com maço de papéis e pedaço de grafite. Renata comenta: “Vejo que não paras de anotar”. Ele sorri envergonhado: “Não quero perder nada”. Na verdade, ele só registra as falas porque não tem perguntas a fazer, por desconhecimento de fatos e obras, ou por timidez. A princesa o tranquiliza: “Sei que farás um ótimo trabalho”. Lembra-lhe: “Teu avô confia muito em ti”. A frase, que deveria ser um incentivo, o deixa mais inseguro. Talvez não seja capaz de eternizar o encontro de Michelangelo, Ariosto e Rabelais. Renata pensa: teu relato ficaria ainda mais instigante se eu te contasse que há um padre-poeta fugitivo escondido numa das claraboias do castelo. Aí, sim, daria um romance.

Em comemoração acadêmica dos 500 anos do Brasil, no ano 2000, o Ministério da Educação distribuiu às bibliotecas públicas e universidades livros impressos na Europa, no século 16, quando as nossas costas estavam sendo descobertas. Rato de papel, eu fui atrás da relíquia que chegou a Porto Alegre. Ao folhear o exemplar, me decepcionei. Era uma mistura de descrição cartográfica, especiarias das Índias e experiências de uma viagem, de autor italiano desconhecido, sem nenhuma relevância. Frustrado, já havia decidido devolver o livro, quando noto entre as páginas folhas impressas em outra tipologia com correções à tinta nas margens, deixadas ali ao acaso ou escondidas propositadamente. Enfio as páginas no bolso do casaco e devolvo a obra com a sensação de que estou cometendo crime hediondo.

Em casa, espalho as páginas na mesa. Pego um livro didático de latim, do meu tempo de Ginásio, para tentar ler o texto complicado, detalhista, confuso, a caligrafia das correções quase ininteligível. Ao lado do título “Um jantar histórico”, foi escrito à caneta: “provisório”. Abaixo vinha o nome do autor, para mim, desconhecido, Aldo Manucio Neto, mas não para a enciclopédia do meu avô. Lá está o sobrenome. Ele é neto de Aldo Manucio, um dos precursores das artes gráficas na Itália.

A história começa no século 15, mais precisamente em 1480, quando Nicolau Genson montou uma tipografia em Veneza, mas não se interessou pelo negócio incipiente, de difícil elaboração e retorno imprevisível. Melhor cair fora, apostar em algo mais garantido. Conseguiu vendê-la para André Torresani, que não estava nem um pouco interessado no empreendimento, mas desejava oferecer ao genro Aldo Manucio uma oportunidade de afirmação, para deixar de ser apenas o marido de sua filha. Ele acabou surpreendendo o sogro. Diretor da gráfica de 1494 a 1515, não só a tornou rentável, como se mostrou visionário na arte de impressão, corrigiu defeitos de Gutenberg, com o emprego de caracteres mais nítidos e de formato prático para facilitar a ordenação. Arrebatado pelas ideias do Renascimento, deu impulso aos estudos gregos. A obstinação do “Velho”, como ele ficou conhecido, estruturou a tipografia, continuada pela teimosia do filho e a hereditariedade do neto. No fim, terceira geração, fechou.

Aldo Neto foi levado à sacada da residência nos canais de Veneza. Colocaram-no sentado numa poltrona perto da vidraça, óculos embaçados, mãos cruzadas, uma manta sobre as pernas. Os familiares queriam ver os barcos e as gôndolas cruzarem as águas, com tochas, na saudação do Ano-Novo, e ficaram com pena de deixar o avô senil sozinho no quarto.

A vista turva, o raciocínio mais lúcido no passado do que no presente, ninguém sabe se ele enxergou alguma coisa. Nas embarcações, homens e mulheres do povo, sentados na popa e no convés, alguns em pé na proa, braços abertos. Cantis de couro de mão em mão, as barbas e os seios salpicados de vinho, eles festejavam aos gritos e risadas estridentes a entrada de 1560. Dias depois o velho gráfico estava morto e levou consigo sua maior frustração: não conseguiu transformar em livro o histórico jantar promovido pela princesa Renata. Sua alma partiu amargurada. A família, como os herdeiros dos jornais de hoje, decidiu que a gráfica seria fechada, o prédio vendido e o maquinário transformado em ferro fundido para ter maior valor comercial. As novas gerações do clã não estavam dispostas a continuar arriscando numa indústria tão efêmera, que exige permanente modernização e pouco lucrativa. Melhor aplicar na qualificação dos vinhos italianos.

Nenhum parente se abalou ao ver o desmonte da tipografia. Só o antigo impressor, os dedos manchados de tinta para sempre, ficou com os olhos marejados atrás das lentes grossas. A impressora plana, as caixas de tipos móveis, tudo seria transformado em ferro e chumbo. Ramas de papel eram levadas para outras gráficas. A mesa de Aldo Neto foi colocada num canto, para ser doada a alguém interessado. O letrista aposentado compulsoriamente se aproxima, numa despedida definitiva do patrão, já com ele ausente. Sente um calafrio. Parece que o velho Aldo o está mandando abrir uma gaveta. Nunca faria isso em sua escrivaninha. Mas, constrangido, obedece. Enfia a mão no fundo e encontra algumas provas impressas. Traz para perto o candeeiro, acende a vela, seca as lágrimas nos óculos, e começa a ler. Lembra-se: ele era aprendiz na época em que o texto foi composto. O jovem Aldo estava entusiasmado; dizia que era o primeiro capítulo de um livro sobre o inesquecível jantar que reuniu Michelangelo, Ariosto e Rabelais. Contudo, quando leu as provas, não gostou. Rabiscou correções nas margens, mas nunca mandou recompor. Não consigo; sei corrigir e montar livros, mas me falta talento para ser escritor. Escondeu as provas de si mesmo, no fundo da gaveta, sem coragem de revelar seu fracasso. Ficou protelando a entrega da encomenda, até que Renata percebeu que ele falhara e, compreensiva, nunca mais voltou ao assunto. O gráfico colocou os originais dentro de um impresso de capa dura encalhado, para não amassar as páginas. Foi para casa com a lembrança mais nítida do patrão embaixo do braço. O livro ruim empoeirado passou 500 anos esquecido em estantes, sem ninguém ler, até chegar a mim.

Resolvo digitalizar a relíquia tipográfica, com as correções e notas à margem, para analisá-la minuciosamente no computador e utilizá-la, como fonte, nesse jogo literário que me propus realizar. Sinto-me como o médico que tem de submeter o enfermo fragilizado a tomografia computadorizada. Lembro-me do meu pai idoso sendo colocado no tubo claustrofóbico. Sairá vivo depois de ter o corpo atravessado por raios laser? Mas se não arriscar, meu diagnóstico, só na base da observação física, será impreciso. Quando os raios de luz do scanner incidem sobre o velho papel, sinto como se fosse o infravermelho de radiografia cruzando o meu próprio corpo. Opto por resolução 600, coloco para visualizar, ajusto os recortes da imagem, e avanço para digitalizar. A luz volta a passar pela folha. Quando levanto a tampa, o papel está reduzido a pó. Limpo o vidro com flanela e coloco outra página. Repito a operação.

Vejo na tela do computador a nova folha digitalizada, uso o zoom 400% para conferir os pormenores. Ao abrir a plataforma eletrônica, constato que o laser voltou a destruir o original, e assim acontece, sucessivamente, com todo o capítulo. Fico com a versão virtual na tela, mas a tecnologia desintegrou as provas tipográficas. Presságio do fim do impresso?

A primeira imagem do jantar descrita por Aldo Neto é Renata da França descendo as escadas brancas de mármore de Carrara, no seu palácio na Itália, “em deslumbrante vestido negro de veludo”. Em uma figura literária, ele diz que o toque dos saltos na pedra se confunde com o fundo musical de canto, lira, cítara, flauta e percussão, sob a regência do maestro francês Claude Goudimel, de 29 anos, compositor de canções em quatro, cinco e até 16 vozes. O jovem chegara de Paris. Renata ficou impressionada com o seu talento e desenvoltura, e prometeu, durante o jantar, ajudá-lo a concretizar seu sonho: criar uma escola de música. A enciclopédia me revela que o projeto de Goudimel se torna realidade sete anos depois.

“Ferrara lhe dá o braço para introduzi-la ao salão. A princesa do Renascimento estende a mão para que suas joias sejam beijadas por Michelangelo e Ariosto. Ao se aproximar do conterrâneo Rabelais, sorri, lhe dá maior atenção”, revelou o narrador, que podia não ter talento para ser romancista, mas começa a se mostrar bom observador, apesar de faltar-lhe a argúcia do repórter, um século antes dos jornais. “A imensa mesa de cedro está preparada para o banquete. Foram dispostos 13 lugares, como na Santa Ceia”, compara. “Os pratos azuis de Florença”, ele pormenoriza, “têm a imagem da Virgem Maria e dois anjos circundam o Menino Jesus. Os talheres franceses de prata trazem o brasão da corte do cunhado Luís XII. São facas pontiagudas e modernos garfos com três dentes; até então eles possuíam apenas dois. Havia cálices góticos de ouro para servir a bebida.”

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