Tibério Vargas Ramos
Ensaios
O trabalhismo inglês
A volta aos sermões de um pastor no século 19

Charles Kingsley, pastor da Catedral de Chester (Reprodução)

A ilha utópica de Thomas More (Reprodução da capa do livro)

Clement Attlee venceu Churchill após a Segunda Guerra (Reprodução)

Tony Blair, alinhado com o Ocidente, Estados Unidos e Israel (Reprodução)

Jeremy Corbyn, progressista e antissemita levou o Partido Trabalhista à pior derrota desde 1935 (Reprodução)

O primeiro-ministro Keir Starmer, vitorioso em 2024 (Reprodução)

Tibério Vargas Ramos

Em 2024, o Partido Trabalhista voltou a assumir o poder na Monarquia Britânica. O país do moralista, intelectual, reformador e católico Thomas More, aquele que escreveu “Utopia” em 1516, cinco séculos atrás. Imaginou no livro uma nova sociedade numa ilha, como sua Inglaterra, com organização social, política, judiciária, religiosidade e fraternidade, com base em “A República”, de Platão, e “A Cidade de Deus”, de Santo Agostinho. Acabou decapitado.

Depois de sucessivas derrotas durante 14 anos, o Partido decidiu se livrar da adesão à chamada ideologia “progressista” e voltou-se aos antigos sermões do pastor Charles Kingsley (1819-1875), no século 19, considerados o embrião do trabalhismo inglês. O religioso, casado, pai de quatro filhos, pertencia à Igreja da Inglaterra, dissidência da Igreja Católica. Sua pregação ocorria nos cultos da Catedral de Chester. Além da atividade religiosa, ele era professor, razoável poeta e romancista, autor de “Os heróis do mar”.

O trabalhismo inglês, nascido nas igrejas, sempre foi tão anticomunista quanto Churchill. Não só aceitava a devoção religiosa, como sua doutrina social se posicionava contra a luta de classes. Pregava conciliação entre capital e trabalho, defendendo a multiplicação de oportunidades, definição da jornada, segurança no trabalho, apoio social e melhorias salariais. As distorções da máquina sindical que se formou, a seguir, revelou-se uma contraindicação do remédio social. Os “pelegos”, no jargão gaúcho, no comando dos sindicatos, contaminaram negociações.

Os comunistas, na verdade, também nunca engoliram os trabalhistas. Qualificados de contrarrevolucionários. Inclusive no Brasil. Até Jango e Brizola entraram na roda, quanto mais Getúlio, demonizado não só pelos lacerdistas, mas também pelos marxistas e seus disfarces na sequência da história que bem conhecemos. Limitavam-se a se manterem girando em torno, tentando pegar pedacinhos. No filme “Legalidade”, com ótimo desempenho do ator Leonardo Machado no papel do governador Leonel Brizola, o diretor Zeca Brito dá um protagonismo aos comunistas no episódio que nunca tiveram, foi sempre assim, uma apropriação da história, marca dos regimes totalitários retratados na ficção de George Orwell em “1984”. Hoje, os neotrabalhistas em extinção, despachantes de verbas públicas, que se dizem socialistas (sic), ficam saltitantes, querendo ser engolidos, desde que levem uma beirada.

“Pinte sua aldeia e pintarás o mundo”, ensinou Tolstoi. Na minha Alegrete, um pouco antes do fim do mundo, o discurso trabalhista nasceu nos anos 1940 nos sermões de leigos e de um pastor em especial, Otto Gustavo Otto, na Igreja Metodista. Numa terra dividida por chimangos e maragatos, lenços brancos e vermelhos, houve a adesão de profissionais liberais, advogados, raros pecuaristas, ferroviários (a cidade era um polo da viação férrea na fronteira oeste), prestadores de serviços, eletricistas, pintores, instaladores hidráulicos, balconistas, motoristas de táxi e caminhões, mecânicos, torneiros de oficinas, empregados de engenhos de arroz, servidores domésticos, biscateiros, moradores das periferias, chamada por Ruy Ramos de “cinturão da miséria”. Adesão na cidade e pouca penetração da zona rural, tradicionalista, com exceção da Colônia do Passo Novo, de pequenos agricultores. Somente nos anos 1950 tornou-se maioria e venceu a primeira eleição majoritária para a Prefeitura. O meu avô, Eduardo Vargas, getulista, tabelião e metodista, assumiu o governo municipal em 1952.

O Partido britânico realizou muitas façanhas, como vencer Churchill após sua postura heroica na Segunda Guerra. Mais do que uma injustiça, um sacrilégio. Clement Attlee assume como primeiro-ministro e fica no poder durante seis anos. Foi substituído em 1951 justamente pelo velho Churchill, que reassume e governa com a Rainha durante mais quatro anos.

A permanência mais longa dos trabalhistas no poder foi com Tony Blair, primeiro-ministro durante dez anos, de1997 a 2007, no reinado de Elisabeth II. Nunca acenou para Rússia, China ou o islamismo do Oriente Médio. Ele sempre se alinhou ao Ocidente, ao lado de Israel e os Estados Unidos, inclusive em guerras. A Inglaterra como protagonista. Com o fim da “Era Blair” e o retorno dos conservadores ao comando do Parlamento, os moderados perderam espaço no Partido Trabalhista e ascendeu a linha radical. Assumiu o comando o esquerdista Jeremy Corbyn, que se autodefine como “socialista democrático”.

Deputado desde 1983 por North Islington, norte de Londres, Corbyn cursou apenas um ano de universidade e apesar de ser um líder trabalhista, nunca teve uma atividade profissional fixa, apenas foi militante e voluntário em ações sociais, e por fim político. Gestado pela máquina sindical e partidária. Está casado pela terceira vez, atualmente com uma mexicana.

Já em 2009, o líder trabalhista se posicionou a favor dos grupos terroristas islâmicos Hamas e Hezbollah, e foi acusado de antissemita. Cercado de velhos militantes, sindicalistas e jovens, Corbyn assumiu a máquina partidária e sintonizou o discurso na adesão ao chamado progressismo, uma impensada e esdrúxula união entre comunistas e oportunistas, empresários e fundações milionárias distribuindo dinheiro para personagens, bandeiras ideológicas e ongs, o globalismo, a cultura woke do “politicamente correto” e a inclusão baseada na divisão. Tudo tendo como ponto em comum a restrição ao debate e à liberdade. A mordaça ao questionamento. Eu sei o que é bom para ti! O totalitarismo intrínseco acabou sendo experimentado com êxito na pandemia. “Fique em casa!” “Use máscara!” “Vacine-se!” Quem morrer, morre do vírus. Todas as outras enfermidades estão banidas por decreto. O pânico generalizado fez dar certo o experimento de um governo mundial. As mortes aumentavam, se proliferavam, mas a culpa era sempre do outro.

Em campanhas eleitorais, o Partido ainda passou a defender nacionalização novamente dos serviços públicos e ferrovias. O eleitor inglês não quis testar a eficiência da proposta e Corbyn sistematicamente perdia e levou o trabalhismo à pior derrota desde 1935 e ele foi defenestrado em 2020. Nas últimas eleições, voltou a se eleger, agora deputado independente, pelo seu curral eleitoral no norte de Londres.

O sucesso do reposicionamento dos trabalhistas foi facilitado pela figura histriônica do primeiro-ministro conservador Boris Johnson e sua postura autoritária durante a pandemia, aderindo de bicicleta ao globalismo e o cerceamento da liberdade em nome de narrativas diversionistas. A vitória em 2024 selou o movimento de volta às origens. O trabalhista moderado Keir Starmer assume como primeiro-ministro. Toca piano e violino. Casado há mais de 20 anos com a judia Victoria Alexander, ambos advogados, casal de filhos, criados na cultura dos avós maternos, frequentando sinagoga, bem diferente do anterior líder trabalhista simpatizante de extremistas que promovem terrorismo contra Israel. Talvez mais uma utopia no país de Thomas More. “Sabia que ia enganar-me de novo”, alerta Camus.

Publicado em 29/7/2024
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